JUE 25 DE ABRIL DE 2024 - 20:40hs.
OPINIÃO - Marcelo M. Correia, advogado e mestre em Ciência Política

O decreto da LOTEX e a exposição ao risco regulatório

O governo federal publicou o decreto n. 9.327 oficializando o processo de concessão da LOTEX e permitindo que o Ministério da Fazenda realize no leilão da Loteria Instantânea, que foi marcado para o dia 14 de Junho. Nesta coluna exclusiva ao GMB, Marcello M. Corrêa, advogado e mestre em Ciência Política, alerta para os riscos regulatórios que as empresas concorrentes na licitação podem correr por conta das disputas judiciais sobre o tema que já estão em processo.

Para todos aqueles que estão acompanhando a novela da LOTEX – a famosa loteria exclusiva da União Federal, cujo Ministério da Fazenda  tenta implantar através de uma concessão , nesta semana ocorreu mais um capítulo importante: a publicação do Decreto n. 9.327, de 04 de abril de 2018.

Ocorre que o decreto em tela pode atrapalhar mais do que ajudar. Ele amplia a exposição de risco regulatório daqueles que pretendem investir no mercado brasileiro de loterias. Ao tratar da regulação do setor, atribuiu competências ao Ministério da Fazenda, sem o devido amparo legal (como veremos adiante). E, em resumo, temos mais um elemento que pode ser discutido nos Tribunais .

Não temos dúvidas com relação ao potencial do mercado brasileiro de loterias, entretanto, a percepção dos riscos regulatórios  impacta a avaliação do equilíbrio econômico-financeiro da concessão almejada. Isso porque dentre os princípios contidos na Constituição brasileira, temos o da LEGALIDADE (art. 37 caput), e como consequência dele, não é possível atribuir competências via diploma diverso de lei em sentido estrito (lei aprovada pelo Congresso Nacional, através de processo legislativo regular).

Com efeito, o art. 14 e seguintes do Decreto n. 9.327/18, ao atribuir competência de “órgão regulador” ao Ministério da Fazenda o fez sem fundamentação e, por conseguinte, fragilizou o sistema do ponto de vista da segurança jurídica. Para sustentar a afirmação acima, vejamos o contido no preâmbulo do citado Decreto 9.927/18: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 28 da Lei nº 13.155, de 4 de agosto de 2015, no art. 2º da Lei nº 13.262, de 22 de março de 2016, e na Resolução nº 16, de 23 de agosto de 2017, do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República.   

Ou seja, tal preâmbulo está indicando os fundamentos legais do decreto: o art. 84, IV da CR/88 (competência privativa do Presidente da República – somente ele pode praticar o ato de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução) e a Lei n. 13.155/15 (que estabelece a LOTEX no âmbito dos princípios e práticas de responsabilidade fiscal e financeira e de gestão transparente e democrática para entidades desportivas profissionais de futebol dentre outros temas ligados a tal prática) , que em seu art. 28 prescreve: DAS LOTERIAS (...) Fica o Poder Executivo federal autorizado a instituir a Loteria Instantânea Exclusiva - LOTEX, tendo como tema marcas, emblemas, hinos, símbolos, escudos e similares relativos às entidades de prática desportiva da modalidade futebol, implementada em meio físico ou virtual.

Em resumo, o preâmbulo informa os fundamentos de eficácia do decreto em tela e, vista a competência determinada pela Constituição e a Lei que autorizou a concessão da LOTEX, perguntamos: em que momento a Constituição e/ou a citada lei atribuiu a competência regulatória ao Ministério da Fazenda? Se não atribuiu, poderia o Presidente da República criar, via decreto, tal competência? Retóricas em apartado, temos que ambas as questões merecem respostas negativas .

Para situar a vulnerabilidade do decreto em comento, vamos revisar o conceito de regulação e o papel do órgão regulador (ou do agente regulador), sobretudo para caracterizar que a Lei da LOTEX não atribuiu tais competências ao Ministério da Fazenda. Nesse sentido, vejamos o conceito na lição de VITAL MOREIRA (1997) : (...) para Mitnick (1980:7), public administrative policing of private activity with respect to a rule prescribed in public interest. Na definição de J.C. Strik (1990:3), a regulação consiste na “imposição de regras e controlos pelo Estado com o propósito de dirigir, restringir ou alterar o comportamento econômico das pessoas e das empresas, e que são apoiadas por sanções em caso de desrespeito”. Adicionalmente, cite-se que MICHEL GENTOT  (1994) definiu as três atividades fundamentais para caracterizar o órgão regulador: a) editar as normas; b) aplicar as normas; e c) reprimir as infrações.

Importante notar que um fator de êxito dos agentes reguladores é a outorga da competência normativa. Insere-se, desse modo, a questão dentro do tópico das delegações legislativas. Isso porque um dos pressupostos da existência do agente em espécie é a sua capacidade de resposta imediata às demandas apresentadas pelos agentes no mercado. Somente por ilustração, destacamos que há três espécies básicas de delegações normativas, a saber: a) delegação receptícia (consiste na transferência da função legislativa ao Poder Executivo para este editar normas com força de lei, no limite da delegação, e, uma vez editadas, não podem ser mais alteradas); b) delegação remissiva  (consiste na remessa legal a uma norma ulterior, sem força de lei e nos limites da delegação); e c) a deslegalização (que é a transferência de determinadas matérias do plano legislativo ordinário para uma instância inferior).

No Sistema Jurídico brasileiro, DIOGO DE FIGUEIREDO  (2001) afirma que com o surgimento do modelo de  agências reguladoras no Brasil, houve a introdução do fenômeno da deslegalização do setor posto sob regulação. Segundo ele, o fenômeno foi desenvolvido na Doutrina francesa sob o título de délégation de matières, sendo inaugurada pela jurisprudência do Conselho de Estado Francês em 1907. Para esta Doutrina, o próprio Poder Legislativo (e nenhum outro), em certas matérias, pode delegar a um órgão do Estado a competência para editar determinadas normas, ocorrendo, desse modo, a translação dessas do domínio das leis (domaine de la Loi) para o domínio dos regulamentos (domaine de l’ ordonnance) .

Exemplo desse fenômeno no Brasil foi o advento da Lei n. 9478/97, que “rebaixou” a matéria pertinente ao setor petrolífero para o status de portaria, como consequência do art. 177, §2º, III da Constituição. Em termos práticos, os comandos normativos ficaram passíveis de alteração por parte da agência reguladora . Em outras palavras, o Congresso Nacional determinou que todo um bloco de legislação perdesse o status de lei . Por este mecanismo, o Congresso Nacional (e somente ele, cabe relembrar) pode editar uma lei para circunscrever certa matéria (marco regulatório) e, da mesma maneira, quando cria o agente regulador (atribuindo-lhe a competência), circunscreve um objeto (área a ser regulada) e um objetivo (o interesse público a ser alcançado) por ele.

Realizado todo esse apanhado de como se estabelece a regulação, fica evidente que a regra inscrita no art. 14 do Decreto n. 9.327/18 é frágil, pois não foi autorizada pelo Congresso Nacional (lei específica nesse sentido) e, sem embargos, tal prescrição poderá ser facilmente contestada nos Tribunais.

Por todo o exposto, se o Ministério da Fazenda buscou, através do decreto em foco, robustecer seu processo de concessão da LOTEX, seria melhor que tal intento fosse realizado via edição de Medida Provisória, cuja previsão constitucional reside no art. 62 e possui força de lei.
 

Marcelo M. Correia
Advogado e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.