VIE 29 DE MARZO DE 2024 - 02:59hs.
Marcello M. Corrêa
OPINIÃO-Marcello M. Corrêa, Advogado e Mestre em Ciência Política

Não existe privilégio republicano

A Advocacia Geral da União (AGU) afirma que a União Federal possui um privilégio para a exploração das loterias. A ideia de privilégio é oposta aos ideais republicanos e um equívoco que merece o devido combate. Não é saudável a existência de um regime de exceção dentro do nosso sistema Jus-Político.

Não existe privilégio republicano

Recentemente e em sede das Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental de números 492 e 493, a Advocacia Geral da União (AGU) afirmou que a União Federal possui um privilégio em relação aos Estados, com fundamento no art. 22, XX da Constituição de 1988 (cabe a União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios).

Vale lembrar que, por força de entendimento da Corte Constitucional, foi incluído no alcance do citado dispositivo os bingos e as loterias, como se verifica na Súmula Vinculante n. 02 (é inconstitucional a lei ou ato normativo Estadual ou Distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias). Sem querer adentrar nos méritos que levaram àquela Corte a fazer tal inclusão, o resultado prático é o atual conflito entre a União Federal e os Estados. Pois, como se sabe, o primeiro quer exercer um monopólio de fato do setor lotérico em franco prejuízo dos segundos.  

Para assegurar o cumprimento da Carta Política de 1988 e, via de consequência, as loterias estaduais, o Governador do Estado do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE), em resumo, buscam o reconhecimento da não recepção dos artigos 1º e 32 (e seus parágrafos) do Decreto-Lei 204, de 1967, pela citada carta de 1988. Isso porque tais regras, novamente em resumo, congelam as loterias estaduais existentes aos patamares operacionais de 50 anos atrás, bem como proíbe outros Estados de explorarem os serviços públicos de loteria (os Estados que não exploravam loterias em 1967 não poderiam executar tais serviços nos dias de hoje).

Sendo assim, se pelo lado dos Estados (e do Distrito Federal) argumenta-se que: a) não há preponderância da União Federal sobre os demais entes da Federação (por força do Pacto Federativo estabelecido na Constituição da República de 1988); b) existe a proibição de monopólios não previstos na mesma Carta Política e; c) o próprio Supremo Tribunal Federal, em mais de uma ocasião, se manifestou no sentido das loterias estaduais poderem executar seus serviços, desde que seguindo o paradigma federal (modalidades e tecnologias). Do outro lado, a União se limita a afirmar que a prerrogativa de legislar privativamente sobre determinada matéria resulta em um monopólio (ou mais recentemente em um privilégio), por força da combinação do art. 22, XX da CR/88, da Súmula Vinculante n.02 do STF e do Decreto-Lei 204/67.

Nesse cenário, a AGU afirma que a União Federal possui um privilégio para a exploração das loterias. O conceito clássico de tal invocação é: vantagem, prerrogativa, apanágio, regalia, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo em detrimento da maioria.  E no verbete da obra Vocabulário Jurídico (de Plácido e Silva, 12 ed. Forense, 1993), privilégio significa lei excepcional, de caráter de exceção. Com efeito, se não existe hierarquia entre os entes federativos, se em uma República (coisa de todos) busca-se a igualdade material (igualdade de todos), perguntamos: como a União Federal pode ter um privilégio em detrimento dos demais entes?

Apenas para lembrar, a ideia de privilégio remete às monarquias, sobretudo as absolutistas. Estamos falando de um tempo em que o Estado era personificado por um Monarca, este que poderia dispor de tudo e de todos – tal como se conhece da celebre afirmação de Luís XIV (1638-1715): Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu (Je souis la Loi, Je souis l'Etat; l'Etat c'est moi). Vulgarmente falando, o Monarca estava acima dos demais e para ele as regras eram em função das conveniências. 

Como se pode facilmente verificar, a ideia de privilégio é oposta aos ideais republicanos. Motivo pelo qual, a afirmação da AGU é um equívoco que merece o devido combate. Não é saudável a existência de um regime de exceção dentro do nosso sistema Jus-Político.

Por isso, até pode parecer um exagero, mas a questão das loterias assumiu contornos muito relevantes do ponto de vista jus-político, pois, em resumo, caberá à Corte Constitucional definir se nossa República está mais próxima de 1967 ou de 2017. Sendo que existe uma certeza: não existe privilégio republicano!


Marcello M. Corrêa
Advogado no Rio de Janeiro e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.