
A decisão judicial que proibiu mais de 100 casas de apostas online — as populares bets — de atuarem no Rio de Janeiro tem causado problemas além das divisas do estado. As empresas bloqueadas alegam que consumidores de outras localidades, como Bahia, Maranhão e Paraná, também perderam o acesso às plataformas.
Ao menos duas empresas de telecomunicações, a Claro e a americana AT&T, enviaram ofícios à Justiça para informar que não conseguem impedir o acesso dessas empresas apenas ao Rio de Janeiro, conforme determina sentença do desembargador Pablo Zuniga Dourado, do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1).
Ao determinar o bloqueio, o desembargador atendeu a um pedido da Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj). Em 2023, a Loterj estabeleceu uma série de normas para as bets se “regulamentarem via Loterj” no país — inclusive para que atuassem em outros estados. A regulamentação exigia o pagamento de outorga no valor de R$ 5 milhões ao Rio, mais 5% ao mês do Gross Gaming Revenue (GGR, o faturamento menos os prêmios pagos aos jogadores).
O valor cobrado pela Loterj é bem menor que a outorga de R$ 30 milhões estabelecida em nível federal pelo Ministério da Fazenda, que trabalha na regulamentação desse mercado no país a partir de legislação aprovada no Congresso. O imposto cobrado sobre o GGR também será mais elevado pelas normas do Executivo federal, de 12%, valendo para todo o país.
Como consequência da decisão do desembargador, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) pediu, no mês passado, que as operadoras de telefonia bloqueassem 115 plataformas não cadastradas na Loterj de atuarem no estado.
Desde o bloqueio, porém, as bets têm relatado problemas de acesso em outros estados. Ao mesmo tempo, ao menos duas bets encontraram um atalho: elas criaram novas URLs (endereços eletrônicos de sites) para seguir atendendo apostadores no Rio. O GLOBO encontrou links alternativos de ao menos duas empresas, a Betano e a Bet365.
Inviabilidade técnica
No dia 5 de julho, a AT&T enviou um ofício à Justiça para informar que não consegue implementar o bloqueio do modo como foi determinado. Para impedir o acesso às plataformas no Rio, todos os demais estados seriam impactados, disse a companhia, que não retornou ao pedido de contato do GLOBO.
Em outro documento, enviado ao desembargador no dia 10 de julho, a Claro também afirma que não há como atender a ordem judicial nos moldes em que foi formulada, por limites na infraestrutura da empresa. Procurada, a Claro disse que não comenta decisões judiciais.
No dia 19 de julho, a Anatel respondeu, em ofício ao desembargador, que algumas empresas entre as suas autorizadas, como Claro, Vivo e TIM, alegaram inviabilidade técnica para o cumprimento da sentença.
Uma semana depois, o desembargador reforçou que o bloqueio não pode extrapolar o Rio e determinou que a Anatel se manifeste sobre os problemas de acesso em outros estados. No processo, a Anatel cobra empenho das operadoras para encontrar uma forma de centralizar o bloqueio apenas nos limites fluminenses.
Segundo o presidente da Anatel, Carlos Manoel Baigorri, inicialmente Vivo, TIM e Claro comunicaram que não conseguiriam limitar o acesso às plataformas apenas ao Rio de Janeiro, mas Vivo e TIM teriam encontrado uma forma de fazer isso. A exceção entre as grandes operadoras nacionais foi a Claro. Ela diz que a prioridade das operadoras deve ser cumprir a sentença.
“Nossa posição é que a decisão judicial precisa ser cumprida (...) Quando a gente recebe a decisão judicial, falamos assim: bloqueie. Ah, não consigo bloquear só no Rio de Janeiro. Cara, a decisão é para bloquear no Rio. Bloqueia onde tiver que bloquear, mas bloqueia o Rio”, disse Baigorri ao GLOBO, após evento na Fiesp, nesta segunda-feira.
Procuradas, a TIM e a Vivo responderam que seguem cumprindo a decisão da Justiça. A Oi disse não comentar ações judiciais em andamento. A Loterj ressaltou que pediu apenas o bloqueio no estado do Rio e que os provedores precisam cumprir a ordem judicial.
Consumidores podem reclamar
O advogado especializado em direito do consumidor Gabriel de Britto Silva acredita que os problemas de tecnologia que impedem a implementação do bloqueio apenas no Rio enfraquecem a sentença e demonstram a inviabilidade de ter vários estados criando normas individuais para credenciar as bets.
Embora outras unidades federativas estejam seguindo o mesmo caminho e criando regras internas para autorizar empresas a atuarem apenas naquele estado, o Rio é o único a credenciar plataformas para que operem em outros lugares do país.
Brunno Giancoli, professor de Direito do Ibmec SP e consultor jurídico, diz que os bloqueios não podem impedir o acesso de consumidores de fora do Rio. Internautas que tiveram seus acessos interrompidos, assim como bets que foram indevidamente impactadas pelos bloqueios, podem recorrer judicialmente para restaurar o acesso às contas, na visão dele.
O CEO do Esportes da Sorte, Darwin Filho, diz que existe a preocupação no setor de que consumidores afetados em outros estados entrem com ações judiciais contra as bets, sobretudo porque os apostadores perderam acesso ao dinheiro que têm depositado nas contas: “São milhões de consumidores sem possibilidade de acessos às suas contas. É uma medida desarrazoada e desproporcional, dado que a própria legislação federal previu um prazo de transição para que as empresas em atividade pudessem se adaptar às normativas regulamentares”.
Usuários se queixam nas redes sociais
O GLOBO encontrou publicações nas redes sociais de consumidores com problemas de acesso a bets em estados como Minas Gerais, Amapá, Paraná, Bahia, Maranhão e São Paulo. A Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) disse que ao menos oito associadas relataram problemas de acesso fora do Rio.
A Betano disse ter enfrentado problemas de acesso em outros estados, mas não quis dizer quais. No galera.bet, o bloqueio atingiu, além do Rio, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. Para o CEO, Marcos Sabiá, a suspensão em contas de outros estados tem impacto não só no faturamento da empresa, mas também no relacionamento com o consumidor. “O governo federal precisa urgentemente se posicionar em relação ao assunto. Isso faz com que operadores estrangeiros olhem para o Brasil e não vejam seriedade”, diz o executivo.
'Bloquear só no Rio é quase impossível'
Analistas em tecnologia da informação concordam que até é possível bloquear o acesso em apenas um estado, mas não se trata de uma tarefa simples. O problema está em garantir o acesso regular a consumidores de outras localidades. Isso acontece primeiramente por conta da complexidade das redes das operadoras de telecom: nem sempre os sistemas que atendem o Rio se concentram no Rio, justamente para o acesso não ser interrompido em caso de algum problema na rede local.
“O bloqueio no Rio pode ser replicado em outros lugares” resume Pedro Diógenes, diretor técnico para a América Latina na empresa de tecnologia CLM. “E nem sempre as tecnologias funcionam 100%. Não é simples determinar até onde vai o bloqueio. Vai até determinada rua? Onde termina o estado? Configurar os equipamentos, de forma que precisem exatamente os limites de uma rua, uma cidade ou estado, não é simples”.
Thiago Souza, professor de tecnologia do Ibmec, diz que os provedores de internet contam com um grupo de endereços IP que são alocados dinamicamente aos usuários. Em outras palavras, ao se conectar na internet neste momento, você recebe um IP, mas pode receber um IP diferente ao se reconectar mais tarde: “Embora uma operadora possa associar uma faixa de endereços IP a uma determinada região, essa associação não é exata. Por exemplo, uma pessoa em Juiz de Fora pode receber um endereço IP da região metropolitana do Rio de Janeiro, o que pode levar a um bloqueio de acesso”.
É possível burlar o bloqueio
Representantes das casas de apostas e analistas concordam que os bloqueios no estado seguem funcionando. No entanto, internautas que se conectarem a uma VPN (espécie de IP remoto) conseguem mascarar sua presença no Rio e continuam acessando as plataformas bloqueadas normalmente, lembra Alexandre Caramelo, professor de MBAs da FGV.
“Além disso, as plataformas de apostas on-line encontraram uma maneira de manter o funcionamento no Rio, criando um novo endereço de rede, como fizeram ao menos duas do setor: a Betano e a Bet365. Funciona porque é um novo servidor, e a rota para esse servidor não está bloqueada”, explica o professor de Direito Digital da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Vinicius Padrão.
Bloqueio e os impactos nos contratos de publicidade
Conforme contou o 'Poder360', a decisão judicial deve afetar diversos contratos de publicidade. Dos quatro clubes do Rio de Janeiro que disputam a Série A, apenas o Flamengo é patrocinado por uma casa de aposta regularizada pela Loterj: a Pixbet. O contrato do Rubro-Negro com a empresa prevê R$ 105 milhões só em 2024.
Já o Vasco tem a Betfair como patrocinadora (R$ 47 milhões em 2024); o Botafogo tem a Parimatch (R$ 27,5 milhões em 2024); e o Fluminense estampa a Superbet (R$ 42 milhões em 2024). Betfair, Parimatch e Superbet não estão regularizadas no Rio de Janeiro.
A Loterj notificou Vasco, Botafogo e Fluminense em 20 de maio. Solicitou que os clubes parassem com as propagandas voltadas à "atividade lotérica não credenciada no Estado do Rio de Janeiro". A notificação também cita sites e produtos oficiais.
Como a regulamentação das apostas esportivas no Brasil ainda é bem recente, especialistas ouvidos pelo Lei em Campo afirmam que os clubes, federações e associações devem tomar alguns cuidados na hora de fechar patrocínios com bets.
Fernanda Soares, advogada especializada em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, ressalta que os clubes devem estar atentos para verificar se a casa de aposta está em conformidade com as autoridades estatais antes de fechar qualquer contrato de patrocínio.
Segundo a especialista, os clubes devem se proteger, colocando algumas cláusulas de defesa nos contratos. "É importante incluir no contrato cláusulas que obriguem as casas de aposta a manterem suas licenças para atuação no Brasil e cláusulas que permitam uma rescisão antecipada do contrato no caso de perda da licença de atuação. Isso evita que o clube seja obrigado a fazer publicidade de uma casa de aposta com operação não autorizada e seja eventualmente penalizado por isso", acrescenta.
Licenças
O Ministério da Fazenda divulgou, em maio de 2024, as regras e deu prazo até 31 de dezembro deste ano para que as empresas sejam regularizadas. A licença nacional, aquela emitida pela Fazenda, custa R$ 30 milhões e tem duração máxima de cinco anos. Já a estadual (com prazo para credenciamento até 13 de agosto), emitida pela Loterj, no caso do Rio de Janeiro, custa R$ 5 milhões e também tem prazo de cinco anos.
Empresas criticam o bloqueio
A ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias), que representa 17 casas de apostas, disse ao 'Poder360' que a posição da Loterj vai contra a lei que regulamenta o setor no país. Também citou que o prazo de regulamentação vai até o fim do ano.
"A determinação de suspensão dos sites ocorreu sem que as empresas jamais tenham sido ouvidas, seja no processo judicial, seja pela Anatel, em uma fase em que o mercado se encontra sob processo de regulamentação no Brasil, com um prazo de transição garantido nacionalmente às operadoras até 31 de dezembro de 2024", disse a associação.
A associação afirmou também que a situação provoca insegurança jurídica e que, apesar de a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) dizer que a exploração de loterias não deve ser monopólio do Poder Federal, a regulamentação cabe à União.
Fonte: GMB