MAR 7 DE MAYO DE 2024 - 07:24hs.
Felipe Augusto Loschi Crisafulli, advogado

A Copa do Mundo do Qatar e os riscos de match-fixing

Em tempos de Copa do Mundo - evento que, tal qual os Jogos Olímpicos de Verão, atrai a atenção de quase metade da população mundial -, as preocupações com possíveis manipulações de resultados (match-fixing) sempre voltam à tona. Esse é o conceito que Felipe Augusto Loschi Crisafulli, professor de Direito Desportivo e advogado no escritório Ambiel, aborda em seu artigo de opinião.

Embora decerto nenhum torneio ou país esteja isento desse risco - há casos na UEFA Champions League, UEFA Europa League, na Alemanha, na Bélgica, na Itália, em Portugal, no Brasil -, cada vez mais as atividades suspeitas, que por regra geral estão ligadas a apostas, vêm se verificando em locais de menor tradição futebolística, isto é, aqueles cujas ligas têm menos relevância (ex.: países cujos clubes não disputam competições internacionais ou atletas têm nível técnico inferior) ou seus torneios contam com menos apelo de público (ex.: campeonatos estaduais cujos clubes não participam das Séries A e B do Brasileirão).

Isso porque, nessas circunstâncias, os manipuladores de resultados (match-fixers) se sentem mais à vontade e mais confiantes para convencer os jogadores, treinadores, árbitros ou dirigentes a se engajar dita manipulação, firmes na ideia de que, por receberem remunerações menos vultosas, serem menos profissionais e/ou estão menos nos holofotes dos órgãos de controle, essas pessoas tendem a ser mais facilmente convencidas de seus propósitos ilícitos e/ou ilegais.

Nesse sentido, o Mundial de Seleções acaba sendo uma competição com risco relativamente baixo de match-fixing, justamente por estarem todos os olhos voltados para o torneio. Ainda assim, com projeções de apostas durante o torneio na ordem dos mais de US$ 150 bilhões ao redor do planeta, todo cuidado é mais que bem-vindo.

Daí, até por se tratar da menina dos olhos de ouro da FIFA, a entidade tomar as devidas precauções para evitar que a integridade desportiva seja abalada, adotando abordagens de prevenção às mais variadas formas de manipulação e/ou influência ilegal em partidas e competições, bem como atuando repressivamente, por intermédio de seus órgãos decisórios.

Preventivamente, as formas mais corriqueiras de se evitar o match-fixing envolvem desde a instituição de sistemas de integridade até programas educacionais para os players desse mercado, a saber, técnicos, atletas, árbitros e dirigentes, mas também os torcedores em si, enquanto consumidores do produto apostas esportivas que são.

O foco, pois, há de ser tanto naqueles que poderão, em teoria, “se deixar vender” por aliciadores, que busquem manipular resultados, até aqueles que eventualmente se depararão, algum dia, com tal situação, a fim de que repilam fazer parte desse tipo de esquema e, em simultâneo, o denunciem através dos canais próprios para tanto, sejam eles estatais, sejam aqueles mantidos pelos entes de administração do desporto.

Como exemplo dessas decisões repressivas, um dos casos mais emblemáticos, e que guarda direta relação com a Copa do Mundo, é o do ex-árbitro ganês Joseph Lamptey, banido para sempre do futebol após uma investigação da FIFA apontar a sua participação em numerosos escândalos, publicamente documentados, ao longo de seis anos. O episódio que desencadeou a investigação e culminou no referido banimento se deu após uma partida das eliminatórias da Copa da Rússia, entre África do Sul e Senegal, em 2016, na qual operadores e monitores de integridade identificaram um volume fora do padrão de apostas centradas no over de gols das equipes, o que acabou por ser posteriormente correlacionado a “decisões erradas intencionais” do hoje ex-árbitro.

De todo modo, uma coisa é certa: trata-se de briga de gato contra rato. De um lado, alguém (o manipulador do resultado) tentando intervir na partida ou competição e maximizar seus ganhos, sempre de olho na equação ‘retorno sobre o investimento e liquidez’; de outro, os órgãos que administram o desporto (além do Estado, é claro), rastreando os movimentos das linhas de apostas (follow the money), buscando detectar irregularidades e evitar danos, diretos ou colaterais, às suas modalidades (e também à saúde pública, à economia e à sociedade como um todo).

A bem da verdade, contudo, não para por aí: no meio disso ainda temos o mercado, precificando cada tipo de aposta, das mais tradicionais - placar do jogo, vencedor da partida, campeão do torneio - aos chamados “eventos menores” - o minuto em que determinado jogador receberá um cartão vermelho, qual equipe cobrará o primeiro escanteio, quantos arremessos laterais ocorrerão no segundo tempo da partida etc. -, e tentando se proteger e reduzir os riscos de interferências externas nos resultados das competições.

No fim das contas, portanto, as casas de apostas acabam sendo, também - quer se queira, quer não -, verdadeiras aliadas do próprio esporte para a sua segurança e confiabilidade. O atuar conjunto destas com as entidades de administração é algo cada vez mais essencial ao esporte mundial, na busca pela maior transparência e insuspeição de suas atividades - e não será diferente durante a Copa do Mundo do Qatar.

Felipe Augusto Loschi Crisafulli
Doutorando em Direito Civil e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas. Professor de cursos de Direito Desportivo e áreas correlatas. Coorganizador da obra coletiva Direito Econômico Desportivo. Advogado do escritório Ambiel Advogados.