VIE 26 DE ABRIL DE 2024 - 05:47hs.
Opinião - Cristiano Heineck Schmitt, advogado

Jogos de apostas esportivas online: o caminho da legalidade até a proteção do consumidor

Com o crescimento as apostas via internet, a questão que se apresenta comumente é a proteção ao consumidor. Neste artigo para o Migalhas, o advogado Cristiano Heineck Schmitt explora o tema e destaca a disseminação dos jogos online, os investimentos em publicidade e a importância de se atentar ao Código de Defesa do Consumidor.

São cada vez mais evidentes os sites e aplicativos de apostas online. Em que pese existir uma diversidade grande desses jogos que são explorados no ambiente digital por centenas de empresas espalhadas pelo globo, o foco do presente artigo é tratar da situação dos jogos de apostas esportivas oferecidos na internet.

Não é peculiaridade do século XXI o desejo do ser humano pela diversão proporcionada por jogos variados onde ocorram apostas, especialmente aquelas com efeitos patrimoniais, isto é, que envolvam dinheiro, sendo aptas a renderem prêmios em moeda.

Um olhar sobre a História remete-nos, por exemplo, à prática de jogos esportivos com o fulcro de ganhar algo, ainda que fosse somente o status social. Observando-se o mundo ocidental, já que seria uma tarefa hercúlea descrever todas as modalidades de jogos praticados ao longo da existência humana, temos o destaque aos jogos olímpicos da Grécia Antiga, com início em torno de 776 a.C., realizados no Santuário de Olímpia, sendo uma festa religiosa, que durava dias, e em homenagem a Zeus. 

Desde esse período até o atual, há um interregno de inúmeros séculos marcados pelo desejo humano do desafio e pela possibilidade de ganhar e superar um adversário. Posteriormente, a este interesse é somado aquele que visa o recebimento de valores em consequência da vitória.

O próprio Estado, nas suas três esferas de atuação, se trabalharmos com o caso brasileiro, é um exímio explorador de jogos, especificamente, de azar. Para termos uma ideia dessa dimensão, a Caixa Econômica Federal, uma instituição financeira bastante conhecida entre os brasileiros, que tem a forma de empresa pública, explora vários concursos de apostas, e faz isso ao longo de várias décadas. Nesse sentido, a título exemplificativo, tem-se o caso da mega-sena, lotofácil, quina, lotomania, timemania, dupla sena, loteca, dia de sorte e super sete. Esse conjunto de possibilidades, somado aos entraves para a prática do jogo no Brasil, deixa bastante perceptível que o Estado não pretende dividir o mercado com a concorrência de um mercado amplamente lucrativo. Recentemente, o leque de apostas da Caixa Econômica Federal, que até então detém praticamente um monopólio da exploração do jogo legalizado no Brasil, foi expandido com a permissão da Loteria da Saúde e da Loteria do Turismo, criadas pela Lei nº 14.455, de setembro de 2022.

Não nos concentraremos nas loterias estatais brasileiras, mas sim nas formas mais recentes de apostas, que remetem à internet, mais precisamente, a aplicativos e sites de apostas esportivas, cuja presença cresce gradativamente no Brasil e no mundo.

O debate, contudo, exige uma passagem pela normatividade exposta no Código Civil, Lei nº 10.406/02, que trata do tema de forma bastante breve entre os artigos 814 a 817. A leitura das regras positivadas no diploma civil indica um legislador que, reconhecendo a realidade do jogo e da aposta na vida do brasileiro, não poderia se eximir em apresentar algo sobre o tema. Se houvesse uma opção puramente refrativa ao jogo e à aposta, ter-se-ia um legislador divorciado da vontade dos cidadãos e da realidade. Por outro lado, uma baixíssima dedicação normativa expõe o fato de que o legislador e executivo mantiveram a tradição de não incentivo ao jogo e à aposta no Brasil, retirando a força sobre as obrigações derivadas desses acordos. Mesmo que situado no capítulo inerente aos contratos em espécie, e sendo tratado como tal, o artigo 814 do CC coloca essas figuras num pedestal de obrigação natural. Assim, reconhecesse o débito derivado da operação, mas retira-se a possibilidade de cobrança judicial do crédito. No entanto, uma vez paga a aposta, esta não será repetível, isto é, não poderá ser reavida pelo apostador, derrotado ou não, salvo se houver prova de dolo, ou se se tratar de jogo efetivado com menor de idade ou interdito.

Por outro lado, pende a dúvida sobre qual tipo de jogo e aposta está a se tratar no âmbito do Código Civil. O parágrafo único do artigo 814 do Código Civil ressalta que a regra de mínima proteção do contrato, por assim dizer, somente terá cabimento em se tratado de jogo não proibido, que se convenciona chamar de "tolerado". No entanto, a norma reconhece como obrigação perfeita aquela derivada dos jogos e apostas legalmente permitidos, isto é, os que possuem uma legislação própria que os legitima e os torna obrigações completas, como é o caso das apostas operadas pela Caixa Econômica Federal.

O jogo tolerado, para atingir a meta de legalidade prevista no diploma civil, deve envolver práticas esportivas, onde estão presentes caracteres que justificam a vitória, como experiência, dedicação, estratégia etc. O mesmo não serve para acobertar jogos de azar, que assim são conhecidos diante da exploração reiterada por uma das partes, nos quais não a outra parte não consegue influir no resultado final.

Até então, estamos a perceber a existência do jogo e aposta legalizados, com legislação própria e explorados pelo Estado, a dos tolerados, constantes no Código Civil. Mas ainda existe uma terceira categoria, e que são os jogos proibidos, ditos ilegais, que são objeto da legislação penal. 

Símbolo do jogo proibido no Brasil, é o caso do notoriamente conhecido Jogo do Bicho. A sua prática reiterada, diária, sendo consumido por milhares de indivíduos, gera um certo mal-estar social no sentido da ausência de desejo no cumprimento da lei. É uma estrutura tão difundida que a repressão estatal, quando ocorre, é mínima se comparada ao volume de operações geradas pela prática.   

A origem do jogo do bicho no Brasil data de 1892, e foi uma bolsa de apostas em que números eram representados por animais, sendo criada para aumentar a frequência popular ao zoológico. O mesmo funcionava da seguinte maneira: "receberia um prêmio em dinheiro o portador do bilhete de entrada que tivesse a figura do animal do dia, o qual era escolhido entre os 25 animais do zoológico e passava o dia inteiro encoberto com um pano. O pano somente era retirado no final do dia, revelando o animal do dia. Posteriormente, os animais foram associados a séries numéricas da loteria e o jogo passou a ser praticado largamente fora do zoológico".

Posteriormente, o Jogo do Bicho atingiu níveis de, por assim dizer, profissionalização na sua prática, fazendo surgir a figura dos "bicheiros", e tornando-se, talvez, o jogo de apostas mais praticado no Brasil. No entanto, o mesmo nunca foi legalizado, de forma que a sua prática é vista como a contravenção penal estatuída no artigo 50 da decreto-lei 3.688 de 1.941, Lei das Contravenções Penais, que expõe o que segue: "Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena - prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local". Ainda, consoante o §2o da referida norma, "incorre na pena de multa, de R$2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador". E esse mesmo artigo 50, em seu §3º, estatui o que se consideram como sendo jogos de azar:  "a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva".

Em suma, há um interesse do Estado em evitar a exploração econômica dos jogos de azar por parte dos particulares, embora ele, Estado, faça aquilo que condena. Registra-se, no entanto, que a prática do Jogo do Bicho recebe certa persecução penal na medida em que o mesmo possa estar associado ao crime organizado, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, e até mesmo homicídios e outros crimes praticados entre concorrentes "bicheiros", o que atrai violência e desagregação social.

Uma cena que ficou famosa também nesse contexto foi ocupada pela lei 9.615/98, chamada de "Lei Pelé", que trata sobre o desporto no Brasil, e que trazia consigo a liberação para que entidades desportivas, por si ou por empresa administradora, exercessem a atividade de bingo. Foi uma época de grande proliferação de Casas de Bingo pelo território nacional, explorados por empresas privadas, que deveriam destinar parte do lucro do jogo para entidades desportivas. Nessas casas de apostas, era possível ver máquinas de caça níqueis convivendo com salões onde continuamente eram efetivadas rodadas de bingo. No entanto, a lei 9.981/21 revogou as regras permissivas do jogo de bingo da lei anterior, de forma que os Bingos foram proibidos, e os que continuaram, se mantiveram à margem da lei. No entanto, o tema retoma importância na medida em que fora aprovado na Câmara do Deputados, no final de fevereiro de 2022, o Projeto de Lei nº 442/1991, que legaliza no Brasil os jogos de azar como cassinos e bingos, e que aguarda análise do Senado. A perspectiva do projeto abre a possibilidade de abertura de cassinos em hotéis, resorts, áreas de turismo, prática de bingo, apostas esportivas, retirando essas atividades da clandestinidade, e da figura da contravenção penal. Além disso, coloca o Estado na posição de um regulador, manifestando-se por meio de agência regulatória própria, que expedirá normas e fará a fiscalização do setor.

Portanto, jogos de azar explorados por particulares ainda, de regra, são práticas delitivas, ilegais, reprimidas pelo Estado brasileiro e não podem ser respaldadas nos permissivos do Código Civil. Neste rol inclui-se, de momento, cassinos, os quais já tiveram sua prática permitida, e que foi tolhida por força do decreto-lei 9.215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra sob o argumento de que a prática do jogo (de apostas) é degradante para o ser humano.

Como dito, o jogo organizado, se pouco ou nada fiscalizado, pode atrair uma série de práticas criminais conjugadas, o que também não é algo particular dessa operação. Há quem aponte o problema da "ludopatia", o vício em jogos, como um problema social atraído por jogos de apostas variados. São cenários de compulsão ou obsessão por jogar, que podem levar o indivíduo a uma ruptura nas suas relações, com perda de amigos, trabalho, divórcio, depressão, cometimento de crimes patrimoniais visando obtenção de valores para apostas, sendo patologia classificada com a siglas CID-10-Z72.6 (Mania de jogo e apostas) e CID-10-F63.0 (Jogo patológico), da Organização Mundial da Saúde - OMS. O comportamento do paciente, neste caso, é semelhante ao vício por bebida alcóolica, drogas etc. Os números não são exatos, mas há quem fale em comprometimento de 0,1% a 6% da população, o que no Brasil poderia significar, no mínimo, duzentos mil habitantes.

No entanto, estamos investigando o que seria possível efetivar no Brasil em termos de jogos, e que não enfrentassem uma nulidade, ou uma percussão penal, que pudessem ser reputadas como uma obrigação perfeita e que desenhe uma relação de consumo.

O desenvolvimento da internet vai produzindo demandas variadas em larga escala. A pandemia Covid19, com seu isolamento necessário, remeteu milhares de pessoas aos meios digitais, e aumentou o tempo de uso daqueles que já frequentavam o ciberespaço de forma corriqueira. Se o "novo normal" garantiu um vultoso aumento das transações de consumo pela internet, envolvendo alimentação, vestuário, plataformas de streaming etc., por que isso não acarretaria também um aumento no que concerne aos serviços de apostas eletrônicas?

Gradativamente, tais atividades vão sendo ampliadas, englobando uma fatia cada vez maior do mercado, e por lógico, esse movimento aporta também aos jogos e apostas eletrônicas online.

Com a disseminação dos jogos de apostas online, cada vez mais as empresas do setor investem de forma maciça em aprimoramentos e publicidade. São diversos players no mercado, com marcas conhecidas, que costuma ocupar espaços de publicidade em campos de futebol e nas mídias em geral, patrocinando eventos entre outros. São empresas que podem apresentar produtos variados, que envolvam não apenas jogos esportivos, mas até mesmo transmissões ao vivo de jogos com comentaristas conhecidos do público. Como no Brasil o futebol ainda é o esporte número um do gosto popular, cada vez mais os clubes têm gerado parcerias de patrocínios com os fornecedores. Clubes como Atlético-MG (Betano), Atlético-GO (AmuletoBet), América-MG (Pixbet), Avaí (Pixbet), Botafogo (Blaze), Fluminense (Betano) e São Paulo (Sportsbet.io) tem como patrocinadores do tipo máster, nas respectivas camisas, empresas do setor de apostas, sendo que muitas delas chegam a investir em dois, três, até seis clubes ao mesmo tempo, como forma de garantir visibilidade à marca e incentivar o consumo do serviço.

No entanto, em razão de inconsistências legais, por assim dizer, criou-se uma situação paradoxal. Na medida em que empresas do setor de apostas esportivas convivem na mídia esportiva como sendo um dos grandes patrocinadores de times, de programas de televisão, youtube etc., expondo suas marcas em inúmeros espaços, estas não podem funcionar no Brasil como casa de apostas, mas somente podem operar fora dele. Considerando-se o gosto do brasileiro pelo esporte, especialmente o futebol, a associação do mesmo a casas de apostas esportivas revela um segmento de mercado altamente lucrativo, e que poderia gerar muitos empregos no país, tributos, etc.

Em 2021, uma estimativa apontada pela empresa Sports Value indicava que os brasileiros movimentaram em torno de 4 bilhões de reais em apostas esportivas, sendo investido 140 milhões de reais na parte publicitária promovida por casas de apostas online, sendo que 85% dos times brasileiros da primeira divisão, isto é, dezessete times, possuíam algum tipo de patrocínio sobre o tema, sem contar em times de basquete, eSports, influencers digitais etc.

E a pregunta que se reprisa é, afinal, está legalizada a aposta esportiva no Brasil promovida por empresa privada, na medida que espaços de publicidades, até uniformes de jogadores, carregam o nome e marca de casas de jogos? A resposta não é tão simples assim.

Uma espécie de cruzada moral e política sempre atuou como empecilho da exploração do jogo no Brasil, moralismo esse que cede quando o promotor das apostas e o próprio Estado. A presença do Estado inundaria o mundo do jogo, sob essa ótica, com uma espécie de beatificação, permitindo livremente sua oferta. Esse cenário repressor, por assim dizer, atrasou inclusive o debate do tema, impregnando a atividade com uma burocracia impeditiva, salvo para aqueles que vivem na ilegalidade, e cujo volume de dinheiro com que operam é surpreendente, diante de uma persecução pífia.

Em 2018, no governo de Michel Temer, tudo indicava que a questão dos jogos de apostas alcançaria um caminho da legitimidade, com a sanção da lei 13.756/18. Embora não fosse ainda uma abertura total ou ampla, poderia se imaginar a convivência com uma certa regulamentação das apostas esportivas no Brasil. A referida lei previu como meio possível de aposta a chamada quota fixa.

Consoante o art. 29 da referida Lei, resta criada a modalidade "lotérica", sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional. No seu parágrafo 1º, define-se a modalidade lotérica como o "sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico". Em termos práticos, "quota fixa" significa que o apostador sabe quanto vai receber se acertar, e o prêmio já é pré-definido pela empresa de apostas, que calcula a probabilidade de um resultado acontecer. Por exemplo, se o apostador jogar 500 reais num resultado, ele sabe que poderá receber dois mil reais de prêmio se acertar o palpite.

O parágrafo 2º do referido dispositivo revela que essa loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais. Ou seja, a regra está a permitir a sua exploração comercial pelo setor privado. No entanto, o par. 3º do mesmo artigo dispõe que o Ministério da Fazenda regulamentará no prazo de até 2 (dois) anos, prorrogável por até igual período, a contar da data de publicação da Lei, o disposto neste artigo. Em outros temos, enquanto estiver pendente a edição de Decreto que regulamente a Lei, o que até o presente momento não ocorreu, há um risco de as operações em torno de quota fixa tornarem-se ilegais no fechamento de quatro anos, o que ocorrerá em dezembro de 2022. E disto deflui outra pergunta: havendo a Lei há quatro anos, permitindo o funcionamento do sistema, ainda que com limitações, por que ainda não foi regulamentada?

Logicamente, o Estado brasileiro, a menos que passe a controlar a internet, não tem como impedir e controlar apostas online das mais diversas modalidades realizadas por meio de sites e aplicativos espalhados pela rede mundial de computadores. É um fato notório que milhares de apostadores realizam jogos de cassino, poker, entre tantos. A perspectiva com a Lei nº nº13.756/18, é que as casas de apostas pudessem se estabelecer no Brasil também, gerando divisas à nação. Dispõe o art. 30 da referida norma que o produto da arrecadação da loteria de apostas de quota fixa em meio físico ou virtual, salvo disposição em lei específica, será destinado para a seguridade social e ao pagamento do imposto de renda incidente sobre a premiação, beneficiando também entidades educativas, entidades esportivas do futebol e o fundo nacional de segurança pública.

Para realizar a aposta esportiva, basta o interessado se cadastrar numa casa de apostas, tendo mais de 18 anos, criando um usuário e senha. As transações serão feitas por cartão de crédito, pix ou boleto. Entre as possibilidades, podem ocorrer apostas que vão desde o time que vai ganhar a partida, ou adivinhar quantos gols serão realizados, no caso do futebol, quantas faltas vão ocorrer etc.

No entanto, outra situação anômala que o sistema acabou gerando, por falta de regulamentação, que se tributa à ausência de vontade ou coragem política, é o fato de que todas essas empresas de jogos, algumas bastante conhecidas em razão da farta divulgação na mídia, não poderem operar no Brasil como casas de apostas. A lei 13.756/18 determina que tais fornecedores não tenham pontos de venda físicos no país, e que somente possam operar por meio de sites hospedados em domínios não registrados no Brasil. A grande parte dessas empresas, que atuam no Brasil, tem sede em Malta, Barbados, Gibraltar, entre outros, fazendo com que estes locais onde operem fisicamente fiquem com a tributação. Uma vez sendo regulamentada a norma indicada, a empresa teria que possuir filial ou sede no país, recolhendo tributos, pagando taxa de fiscalização, e obedecendo a outros tramites legais que agregam maior segurança ao serviço.

Portanto, respondendo aos questionamentos, até o presente, enquanto se aguarda regulamentação, é possível e legal no Brasil a aposta online, promovida por empresa sem loja física no território nacional, que opere com quota fixa de premiação em apostas esportivas, cujo domínio do site não seja registrado no país. Na nossa modesta opinião, uma situação esdrúxula, uma vez que a legislação está preparada, inclusive, para executar a tributação do setor, que, de momento, não ocorre, e o produto arrecado fica para o fisco de outra nação que recebe a sede da casa de aposta.

Mas outra pergunta deflui do sistema parcial até então existente: por que afinal existem tantas empresas do setor promovendo publicidade interna das mais variadas formas? E resposta é simples: tais fornecedores atuam no Brasil na condição de empresas de publicidade (marketing esportivo) tão somente. Realizam uma autopublicidade convidando os apostadores ao seu site, cujo domínio é estrangeiro, estimando-se que, em torno de 450 casas de apostas operem pelo Brasil, embora através da internet, diga-se, aliás, um ambiente que não conhece fronteira física. Evidentemente, não há como o Brasil realizar persecução criminal a uma empresa com sede na Rússia, por serviços de Cassino ofertados pela internet, aplicando-lhe a lei de contravenções penais brasileira. A questão é, estando a empresa a cumprir os requisitos legais atuais, mesmo sem a regulamentação, a mesma teria amparo judicial no caso de pleito aforado no Brasil, pois desenvolveu atividade lícita.

E nesse emaranhado normativo, como fica o apostador considerado como consumidor? Talvez a principal dúvida que possa surgir é sobre a garantia de recebimento do prêmio. Uma situação que deve ficar bastante clara, é que, para o apostador, tais jogos esportivos com apostas em dinheiro não se revelarem como um investimento, por mais que o apostador pretenda realizar cálculos de probabilidades, ou contratar um trader esportivo, um mentor que o auxilie. É apenas um cenário de lazer agregado ao interesse por torcer a certa equipe. Por certo, apostar em site estrangeiro acarreta o risco de, em caso de exigência do prêmio, o apostador ter que movimentar uma máquina judicial estrangeira, e sem garantias de que a casa de apostas tenha patrimônio suficiente para suportar uma condenação.

Nesse sentido, as marcas mais atuantes, ao menos, têm uma obrigação de garantir a lisura e transparência do agir como forma a preservar o próprio negócio. Outra dúvida que pode advir é a necessidade de um programa de compliance intenso dos players do setor, para se evitar a corrupção com o acerto prévio de resultados, envolvendo times, jogadores, árbitros, cenários não tão incomuns na prática do futebol. Com garantias que tais situações sejam raras, o sistema tende a prosperar.

E diante da legislação atual, como proteger o consumidor? A vulnerabilidade do consumidor é uma característica intrínseca a este agente da relação de consumo, como aponta o artigo 4º, inciso I do diploma consumerista brasileiro. Não pesam dúvidas de que os serviços de apostas esportivas online apresentam um usuário final, o consumidor, definido como tal no artigo 2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90, assim como um fornecedor, consoante dispõe o artigo 3º, caput, do mesmo diploma legal. O serviço, no caso, é inerente ao lazer.

Acerva de vícios do serviço, o artigo 20 do CDC, enquadra como fornecedores todos aqueles que participaram da relação de consumo, da cadeia de fornecimento, com maior ou menor intensidade, garantindo-se a solidariedade destes frente aos danos gerados ao consumidor. E a artigo 14, caput, apresenta a mesma perspectiva no que concerne aos defeitos do serviço.

No campo digital, algumas vulnerabilidades se acentuam, pois é necessário ao usuário compartilhar dados pessoais para se cadastrar nos sites de apostas, de forma que uma primeira preocupação do fornecedor deva focar a questão da proteção desses dados, e também do sigilo, visto que muitos apostadores não querem ser vistos com tais status, especialmente em face do preconceito que recai sobre jogos de apostas.

Já anunciado anteriormente, uma preocupação importante reside justamente sob o cumprimento do pagamento do prêmio. Caso o consumidor tenha que reivindicar o mesmo em país estrangeiro, necessitando de um patrono desta nação, diante de uma legislação distinta, as chances de obter o cumprimento do contrato são remotas, colocando o consumidor-apostador em prejuízo. No entanto, pode ocorrer que a referida casa de apostas tenha representação no Brasil, ainda que operando como empresa de marketing esportivo. A nosso ver, seria o suficiente para atrair a responsabilidade desta sucursal, na medida em que ela divulgue o serviço de apostas, gerando expectativas e confiança sobre o consumidor. Seria, no mínimo, uma decorrência da lealdade de emana da boa-fé objetiva, que é referida no artigo 51, inciso IV do CDC, por exemplo. Da mesma forma, entendemos como vinculada solidariamente ao prejuízo suportado pelo consumidor a celebridade que associa seu nome a uma casa de apostas, especialmente quando desenvolve alguma parceria nos lucros, podendo ser aplicado ao caso o artigo 7º, par. único do CDC.

O artigo 12 do CDC, ao descrever os responsáveis solidários e diretos pelo fato (defeito) do produto, inclui, por opção legislativa, a figura do importador. E o motivo dessa presença é o fato do risco criado com a inserção de um produto estrangeiro em território nacional, pois em caso de danos, o consumidor teria que tentar promover um pleito no exterior, o que tende a ser inviável economicamente ao vulnerável da relação de consumo. Para que isso não ocorra, o importador passa a responder no caso. Sob essa mesma perspectiva, pode-se pensar na responsabilização do agente que promove o acesso a casa de apostas estrangeira que posteriormente não honra o pagamento do prêmio.

Em uma atitude inédita, a Senacon, Secretaria Nacional do Consumidor, recentemente, em agosto de 2022, notificou empresas do setor, bem como todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro, alguns da série B, além de federações regionais de futebol, para que apresentassem cópias dos contratos havidos entre esses players envolvendo apostas esportivas. Em princípio, a atuação da Senacon não teve um respaldo muito legítimo, já que o que seria o motivo principal é a ausência de regulamentação da atividade sem nenhum controle. Ocorre que, cumpridos os requisitos da lei 13.756/18, havendo autorização para tanto, não há supedâneo que possa genericamente levar ao entendimento que o serviço de aposta prestado esteja a se enquadrar como prática criminosa ou prejudicial ao consumidor, não sendo algo que funcione, até o momento, na clandestinidade. De qualquer forma, a persecução no caso, abala o setor e afasta investidores, que passam a cogitar da precariedade jurídica do sistema. O fato de não existir uma fiscalização específica sobre o jogo, por falta de regulamentação de norma aprovada há quatro anos, não retira a legitimidade do serviço, e nem por isso, somente, o mesmo se torna lesivo aos consumidores em geral.

Como se pode observar, o tema ainda é recente. Superar a barreira moral nacional contra o jogo e aposta promovidos por empresa privada do setor foi uma quebra de um tabu de décadas, e que corre o risco de retrocesso, caso a lei que alberga o permissivo da atividade não seja regulada. É uma atividade que remete a serviços de lazer, que cresceu muito com a pandemia Covid19, junto com a internet, e que pode gerar grandes divisas ao país, e empregos. É bastante possível a fiscalização, de forma que a prática do jogo de apostas não sirva de fachada a práticas delitivas, tal como ocorre com o vetusto Jogo do Bicho, e principalmente, que garanta ao consumidor um nível de segurança esperado sobre a lisura do processo, em que pese a álea seja o elemento que permeia o serviço de apostas esportivas online. Esperamos que o serviço receba a correta regulação, que realmente possa produzir as benesses que a própria lei contempla e que o consumidor tenha a proteção necessária ao realizar o jogo de apostas.

Cristiano Heineck Schmitt
Advogado, Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS, professor de Direito da PUC-RS, pós-graduado pela Escola da Magistratura do RS, secretário-geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/RS, membro do Instituto Brasilcon, membro do Ibdcont - Instituto Brasileiro de Direito Contratual.

Fonte: Migalhas