Com a formalização do mercado de apostas esportivas de quota fixa, popularmente conhecidas como bets, o que antes era um universo difuso, operando em uma zona cinzenta da legalidade e movimentando bilhões de reais anualmente para jurisdições estrangeiras, hoje caminha para se tornar um setor robusto e tributado da economia nacional.
A Lei nº 14.790/2023, que finalmente regulamentou a matéria, representa um marco, com uma promessa de segurança jurídica, proteção ao consumidor e, claro, uma nova e vultosa fonte de arrecadação para o Estado.
Contudo, recentes notícias apontam que existe uma ameaça essa “segurança jurídica” do mercado regulado de bets: a intenção da Receita Federal do Brasil (RFB) de lançar um olhar retroativo sobre as operações.
A tese, ainda não formalizada em autuações, ventila a possibilidade de exigir Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), PIS e COFINS sobre as receitas auferidas pelas empresas de apostas no período anterior à sua licença e regulamentação, quando operavam a partir do exterior, mas com foco no público brasileiro.
Este artigo se propõe a analisar essa pretensão fiscal sob a ótica do contribuinte. Analisaremos a frágil construção argumentativa que a RFB precisaria erigir, centrada no conceito de "estabelecimento permanente", e, em contrapartida, abordaremos de maneira sucinta os possíveis argumentos de defesa dos contribuintes.
I. O tortuoso caminho legislativo das apostas no Brasil
Para compreender a controvérsia fiscal que se aproxima, deve-se analisar a história legislativa brasileira dos jogos de azar e apostas. Por mais de sete décadas, o Brasil viveu sob a égide do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais).
Em seu artigo 50, a lei estabelecia como contravenção a exploração ou o estabelecimento de "jogo de azar em lugar público ou acessível ao público", efetivamente banindo cassinos, bingos e a maior parte das modalidades de aposta do território nacional. Essa proibição, fundamentada em uma moralidade de época que via o jogo como uma atividade deletéria, relegou o setor a uma clandestinidade marginal e perigosa.
O advento da internet, contudo, criou uma realidade que o legislador de 1941 não poderia prever. Empresas sediadas em jurisdições onde o jogo era legal (como Malta, Curaçao ou Gibraltar) passaram a oferecer seus serviços a clientes brasileiros por meio de plataformas digitais.
Seus servidores estavam no exterior, suas contas bancárias no exterior, e sua estrutura corporativa, também. Para o ordenamento jurídico brasileiro, elas simplesmente não existiam aqui. Essa ausência física e jurídica permitiu que operassem em uma vasta "zona cinzenta": não eram legais, pois a exploração de jogos no Brasil era vedada, mas também não eram ilegais, pois a lei não previa o ato de um brasileiro apostar em um site estrangeiro.
A primeira grande virada ocorreu com a Lei nº 13.756/2018. Inserida em uma legislação sobre a destinação da arrecadação de loterias, ela criou a modalidade de "aposta de quota fixa", legalizando, em tese, as apostas esportivas. O texto definia a modalidade e autorizava sua exploração pelo Ministério da Fazenda, que teria o prazo de dois anos (prorrogáveis por mais dois) para criar a regulamentação necessária para a concessão de licenças de operação.
O que se seguiu foi um hiato de quase cinco anos. O prazo original expirou, a prorrogação também, e o Brasil se viu em uma situação paradoxal: a atividade era legal na teoria, mas impossível de ser explorada legalmente na prática por empresas instaladas em território nacional, pois não havia regras, não havia licenças, não havia legislação regulando como uma empresa poderia se estabelecer, quais impostos pagaria etc.
Durante este limbo (2018-2023), o mercado explodiu. As empresas, ainda sediadas no exterior, intensificaram suas operações voltadas ao público brasileiro, firmando patrocínios milionários e investindo pesado em publicidade, cientes de que a regulamentação era inevitável e que construir uma marca forte seria crucial.
Finalmente, a Lei nº 14.790/2023 pôs fim à espera. Esta lei, sim, regulamentou de forma exaustiva o setor. Ela definiu o que é o "Gross Gaming Revenue" (GGR) – a receita bruta de jogo, calculada como o total de apostas menos os prêmios pagos – como a base de cálculo para a tributação.
Criou uma contribuição social específica sobre o GGR (a uma alíquota de 12%), estabeleceu os critérios para a obtenção de licenças (outorgas que custam até R$ 30 milhões), impôs regras rígidas de compliance, governança, jogo responsável e prevenção a ilícitos, e determinou que as empresas autorizadas deveriam ter sede e administração no Brasil, o que permitiria finalmente a tributação de tal setor no país, gerando receitas importantes ao Estado Brasileiro.
Esta linha do tempo é fundamental. Ela demonstra que a atividade de aposta esportiva, como um negócio jurídico e econômico reconhecido e operável em território nacional, só passou a existir, de fato e de direito, no apagar das luzes de 2023. Antes disso, havia um apenas um esqueleto legal (Lei de 2018) e é exatamente sobre esse período prévio à recente regulamentação que a Receita Federal agora pretende exigir tributos de forma retroativa e desrespeitando diversos princípios e regras tributárias.
II. A ofensiva do fisco: A tese do estabelecimento permanente e a busca por um fato gerador no passado
A Receita Federal, em sua missão arrecadatória, não se deixará intimidar pela ausência de uma lei específica que regesse a tributação das "bets" antes de 2023. Sua estratégia de autuação provavelmente se apoiará em uma combinação de princípios gerais do direito tributário e na interpretação extensiva de conceitos existentes, notadamente o de "estabelecimento permanente".
A. O princípio do Pecunia Non Olet (O dinheiro não tem cheiro)
O ponto de partida da RFB será, invariavelmente, a interpretação dos artigos 3º e 118 do Código Tributário Nacional (CTN), que positiva o princípio do pecunia non olet. Segundo estes dispositivos, a validade jurídica dos atos praticados ou a natureza do seu objeto não são relevantes para definir a ocorrência do fato gerador.
Em outras palavras, a ilicitude ou a atipicidade da atividade que gera a riqueza não impede a tributação sobre ela. O Fisco argumentará que, mesmo que a operação das "bets" fosse irregular ou atípica antes da regulamentação, elas auferiram receita (e obtinham muito lucro), e essa receita, por si só, é um fato econômico passível de tributação.
Contudo, a aplicação deste princípio não é absoluta. Ele pressupõe que, apesar da ilicitude da fonte, o fato gerador do tributo esteja perfeitamente definido e configurado na lei, o que é o ponto central da controvérsia.
B. A tese central: O estabelecimento permanente (EP) de fato
O ponto fraco das empresas de apostas que operaram no "período cinzento" é sua estrutura, que, embora formalmente estrangeira, possuía diversos elementos no Brasil. É aqui que a RFB concentrará seus esforços, buscando caracterizar a existência de um Estabelecimento Permanente (EP) de fato em território nacional.
O conceito de EP é a chave para que um país possa tributar os lucros de uma empresa não residente. Ele é extensamente tratado nos acordos para evitar a dupla tributação (seguindo o modelo da OCDE) e também na legislação interna de muitos países. No Brasil, embora o conceito seja menos detalhado que no modelo da OCDE, a jurisprudência administrativa (especialmente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF) e a legislação esparsa dão forma à sua aplicação.
Um EP é, essencialmente, uma instalação fixa de negócios por meio da qual a empresa estrangeira exerce toda ou parte de sua atividade. A RFB não precisa encontrar um estabelecimento fixo com placa na porta. Ela buscará um "EP de fato" através da análise de um conjunto de elementos que, somados, indicariam uma presença econômica substancial e contínua no país. Os principais alvos da fiscalização serão:
1.Agentes com poder para concluir contratos: A figura do country manager ou de diretores locais será minuciosamente investigada. Se a RFB encontrar evidências de que esses indivíduos, mesmo que contratados como consultores ou PJs, possuíam autonomia para negociar e fechar contratos de publicidade, patrocínio ou parcerias em nome da empresa estrangeira, este será um indício de EP.
2.Estruturas de marketing e vendas: Os investimentos em publicidade serão vistos não como meras despesas, mas como parte da operação comercial no Brasil. Contratos com agências de publicidade, acordos de patrocínio com dezenas de clubes de futebol e a extensa rede de "afiliados" (influenciadores digitais e sites que recebem comissão por direcionar clientes) serão interpretados como uma operação em solo brasileiro.
3.Serviços de suporte ao cliente (SAC): A existência de equipes de atendimento ao cliente em português, operando em fusos horários compatíveis com o Brasil, mesmo que via empresas terceirizadas, será um argumento em favor do Fisco.
4.Meios de pagamento locais: A integração com sistemas de pagamento brasileiros, como PIX e boleto bancário, será importante na argumentação da RFB. A autoridade fiscal argumentará que, ao utilizar a infraestrutura financeira do país para receber depósitos e pagar prêmios, a empresa não está meramente recebendo de clientes brasileiros, mas operando dentro do sistema econômico nacional.
Ao somar esses elementos, a RFB terá elementos para afirmar que existia uma operação robusta e permanentemente estabelecida no Brasil, ainda que camuflada por uma estrutura societária estrangeira. Uma vez caracterizado o EP, o Fisco aplicará as regras gerais de tributação (IRPJ, CSLL, PIS/COFINS) sobre as receitas que considerar como sendo auferidas por essa "filial de fato", aplicando multas de ofício (que podem chegar a 100% do tributo) e juros.
III. As teses de defesa do contribuinte
Diante dessa ofensiva, o contribuinte não está desarmado. A defesa se estrutura em princípios fundamentais e na desconstrução fática da tese do Fisco.
A. Os princípios da Irretroatividade e da Anterioridade (Art. 150, III, 'a', 'b' e 'c', CF/88)
O argumento mais robusto contra a tributação retroativa das empresas de apostas reside em dois pilares indissociáveis: a extraterritorialidade de suas operações (inexistência fática ou jurídica de estabelecimento permanente no Brasil) e a consequente impossibilidade de configuração do fato gerador dos tributos sobre a receita e o lucro (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) sob a legislação vigente à época.
Até a promulgação da Lei nº 14.790/2023, a realidade operacional dessas empresas era inequivocamente estrangeira. Seus servidores, plataformas tecnológicas, estruturas societárias, contas bancárias e pessoal estavam localizados no exterior. O apostador brasileiro, por meio da internet, acessava um serviço prestado integralmente fora do território nacional.
Sob o princípio da territorialidade que rege a legislação tributária brasileira, a renda e a receita auferidas por uma pessoa jurídica não domiciliada no país, a partir de uma atividade econômica nela não estabelecida, não se submetem à tributação pelo IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. A cobrança desses tributos pressupõe uma fonte produtora localizada no Brasil, o que factualmente não ocorria.
A prova cabal dessa realidade é a própria Lei nº 14.790/2023. Uma de suas exigências centrais para a regularização da atividade foi a obrigatoriedade de que as operadoras obtenham autorização e constituam uma pessoa jurídica no Brasil, com sede e administração em território nacional. Ora, se a nova lei teve que criar essa exigência, ela o fez justamente porque tal condição não existia anteriormente. Este ato legislativo não apenas regula o futuro, mas também serve como uma confissão implícita de que, no passado, o nexo de conexão territorial necessário para a tributação era ausente.
A partir dessa premissa geográfica, a análise jurídica se aprofunda na ausência dos elementos estruturais da hipótese de incidência tributária. Qual era o Fato Gerador e a Base de cálculo? O fato gerador do IRPJ e da CSLL é a "aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda". Contudo, o que se poderia definir como "renda" de uma "bet" antes da lei? Seria o valor total apostado (stake)?
Ou a receita bruta de jogo (GGR), que corresponde ao stake menos os prêmios pagos? A ausência de uma definição legal para a base econômica da atividade impedia a própria configuração do fato gerador. O conceito de GGR foi uma inovação trazida pela Lei de 2023, que precisou criá-lo e defini-lo justamente porque ele não existia no ordenamento. Tentar aplicá-lo retroativamente é um ato de pura ficção jurídica.
Além disso, sem o GGR legalmente instituído, seria impossível calcular o lucro real ou presumido. A aplicação do regime de lucro presumido, por exemplo, exige a aplicação de um percentual sobre a "receita bruta", conceito que, como vimos, era incerto. Já a apuração do lucro real demandaria regras contábeis claras para a dedutibilidade de custos e despesas, principalmente os prêmios pagos – regras que simplesmente não existiam para este setor.
Qualquer tentativa de cálculo seria um exercício de adivinhação, desprovido de segurança jurídica.
Nesse cenário, a tentativa da Receita Federal de aplicar o regime geral do IRPJ/CSLL às operações passadas configura um claro uso de analogia para exigir tributo, prática expressamente vedada pelo Art. 108, § 1º, do Código Tributário Nacional.
O Fisco estaria, na prática, "pegando emprestado" um regime tributário desenhado para atividades empresariais convencionais e aplicando-o a uma realidade econômica singular que a própria lei ainda não havia reconhecido, formatado e internalizado no território nacional. A cobrança retroativa não é, portanto, uma mera interpretação da lei, mas uma tentativa de reescrever a história econômica e legislativa, aplicando conceitos futuros a um passado que não os comportava.
B. A desconstrução fática do estabelecimento permanente
Além disso, o contribuinte deve atacar a premissa fática da RFB. A caracterização de um EP não é automática e depende de provas robustas. A defesa deve demonstrar que:
- Servidores e Decisões no Exterior: A "instalação fixa de negócios" em um mundo digital é o servidor. A empresa pode provar, por meios técnicos, que seus servidores, bancos de dados, e a infraestrutura tecnológica central estavam localizados fora do Brasil. Da mesma forma, atas de reunião, estruturas de governança e registros de decisão podem comprovar que o "cérebro" da empresa e o poder decisório final sempre estiveram no exterior.
- Caráter Auxiliar e Preparatório dos Serviços Locais: O modelo da OCDE, referência mundial, exclui do conceito de EP as atividades de caráter meramente preparatório ou auxiliar. A defesa pode argumentar que os serviços de marketing, publicidade e até mesmo o SAC no Brasil não eram a atividade-fim da empresa.
- Independência dos agentes: os countries managers não tinham poder para concluir contratos sozinhos e que atuavam como meros consultores, representantes ou prospectores, com todas as decisões vinculantes sendo tomadas pela matriz estrangeira. Da mesma forma, agências de publicidade, afiliados e processadores de pagamento são entidades independentes, prestando serviços a diversos clientes, e não se confundem com a própria empresa de apostas.
A soma desses argumentos, amparada por uma robusta documentação, pode esvaziar a tese da RFB de que havia um EP de fato no Brasil, tornando qualquer tentativa de tributação sobre os lucros da matriz estrangeira infundada.
C. O arbitramento como ferramenta da RFB - ilegalidade
Diante da ausência de uma base legal clara e de registros contábeis no Brasil para o período pré-regulamentação, uma das poucas ferramentas que a Receita Federal poderia tentar utilizar para constituir o crédito tributário é o arbitramento, previsto no artigo 148 do CTN. O arbitramento é uma técnica de apuração da base de cálculo por estimativa, que a autoridade fiscal pode utilizar quando a apuração regular se torna impossível ou indigna de fé.
No caso das "bets", diante da "impossibilidade" de apurar o lucro real ou presumido em relação aos períodos passados, o fiscal lavraria o auto de infração arbitrando a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. É neste ponto que reside a maior ilegalidade: para estimar a receita de, por exemplo, 2022, o fiscal provavelmente utilizaria os dados de faturamento ou a participação de mercado da empresa em 2025, período em que a operação já está licenciada e formalizada no Brasil.
O fiscal poderia, por exemplo, pegar a receita declarada em 2025 e projetá-la retroativamente, um método baseado em pura presunção.
Essa metodologia é flagrantemente ilegal por presumir que a realidade econômica, a concorrência, os custos operacionais e a base de clientes de um mercado regulamentado são idênticos aos de um mercado não regulamentado e offshore, o que é uma falácia.
Pergunta-se: a RFB vai arbitrar apenas as receitas auferidas para apurar o lucro ou também vai arbitrar todos os custos/despesas necessárias à atividade (despesas de publicidade, SAC, licenças de softwares etc)? Obviamente que vai pelo caminho mais vantajoso para os cofres públicos.
Tanto o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) quanto o Poder Judiciário têm julgados que vedam o arbitramento baseado em presunções frágeis, sem nexo com a realidade do período fiscalizado e que funcione como um atalho para o dever do Fisco de provar a ocorrência do fato gerador.
IV. Conclusão: segurança jurídica, a aposta inegociável do Estado de Direito
A saga da tributação das "bets" no Brasil é muito mais do que uma disputa por bilhões em arrecadação. É um caso que coloca em teste a maturidade de nossas instituições e a solidez de nossos princípios jurídicos. A pretensão de tributar retroativamente uma atividade que o próprio Estado foi moroso em regulamentar representa um perigoso flerte com o arbítrio e uma erosão da segurança jurídica, que é o pilar de qualquer ambiente de negócios saudável e previsível.
Tributar o passado é punir o empreendedor que operou em um vácuo deixado pelo Poder Público. É mudar as regras do jogo depois que a partida terminou, gerando uma instabilidade que afugenta o investimento estrangeiro e desacredita o Brasil como um país sério para se fazer negócios. A mensagem enviada por uma autuação retroativa seria devastadora: a de que, no Brasil, nem mesmo a ausência de lei é garantia de que o Estado não virá, no futuro, inventar uma obrigação que nunca existiu.
Portanto, a conclusão inevitável é que a cobrança retroativa de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS sobre as receitas das "bets" antes da Lei 14.790/2023 é uma impossibilidade jurídica. Ela é inconstitucional em sua essência, por violar as cláusulas pétreas que regem o poder de tributar. É impraticável em sua materialidade, pela ausência dos elementos essenciais da obrigação tributária. E é ilegítima em sua moralidade, por trair a confiança daqueles que agora são chamados a se regularizar.
Thiago Corrêa Vasques
Sócio no VNP Advogados