Nos últimos meses, voltou ao debate no Congresso Nacional a proposta de proibir as chamadas apostas em eventos individuais, também conhecidos como mercados secundários, que correspondem a apostas em cartões, escanteios ou faltas. A justificativa para a restrição é que esses mercados seriam os mais vulneráveis à manipulação de resultados, comprometendo a integridade do esporte.
A ideia parece intuitiva, mas será mesmo que é eficaz? Uma análise mais atenta mostra que não.
O que são mercados primários e secundários?
Antes de tudo, vale esclarecer os conceitos:
- Mercados primários ou principais: são aqueles diretamente ligados ao desfecho da partida, como “quem vence o jogo”, “quantos gols serão marcados” ou “placar exato”. São os mais líquidos, com grande volume de apostas e participação de apostadores comuns.
- Mercados secundários ou de ações individuais (side bets): envolvem eventos específicos dentro do jogo, que não alteram diretamente o placar final. Exemplos: número de escanteios, cartões recebidos, primeira falta, ou até desempenho individual de atletas (quantos arremessos, faltas cometidas, etc.).
Na prática, os mercados secundários são menores, com menos volume e maior rastreabilidade das movimentações.
Onde realmente ocorre a manipulação?
O relatório Global Integrity in Action 2024, da Sportradar — uma das maiores referências globais em monitoramento de apostas — analisou 1.108 partidas de futebol com indícios de manipulação. O resultado é revelador:
-43% dos casos ocorreram em apostas combinadas, que recaem sobre resultado final do evento esportivo (vitória, derrota e empate) e total de gols;
- 30% em apostas apenas no total de gols (over/under);
- 7% no placar exato;
- 7% em derrotas por margem mínima;
- 13% em outros mercados, incluindo cartões e faltas.
Ou seja, mais de 85% da manipulação está nos mercados principais, isto é, mercados que se voltam ao desfecho da partida. Apenas uma pequena parcela envolve condutas individuais, isto é, mercado secundários.
Outro estudo da Sportradar, com dados entre 2009 e 2014, identificou 1.625 partidas suspeitas. Apenas 0,37% dos casos estavam relacionados a side bets como cartões amarelos.
Exemplos recentes
No Brasil, o caso do jogador Ênio, do Juventude, na primeira rodada do Brasileirão deste ano, chamou atenção. Várias casas de apostas detectaram movimentações anômalas envolvendo apostas em um cartão amarelo do atleta, com valores muito acima do padrão de mercado. Essas irregularidades só puderam ser percebidas porque o mercado de cartões era ofertado legalmente no Brasil.
Se esse mercado fosse proibido aqui, a manipulação teria ocorrido da mesma forma em sites no exterior — inclusive bancas físicas na Inglaterra receberam apostas suspeitas — mas o regulador brasileiro ficaria sem visibilidade.
Um fenômeno global, sem fronteiras
A manipulação de resultados não é um problema local, mas sim global. Casos de spot-fixing (manipulação de eventos específicos) já ocorreram em diferentes modalidades e países:
-Cricket na Índia: jogadores combinando o momento exato de um no-ball (arremesso irregular).
-Tênis: atletas perdendo propositalmente sets ou games específicos, alvos comuns de apostas ilegais.
-Beisebol e futebol internacional: escândalos de manipulação documentados pela Interpol e Europol, sempre com atuação de redes transnacionais de crime organizado.
Esses exemplos mostram que restringir mercados dentro do Brasil não impede sua oferta em outros países — regulados ou não. Apostadores (inclusive os envolvidos na fraude) simplesmente migram para onde esses mercados estão disponíveis.
O crime organizado, com ou sem restrição da oferta de apostas em mercados secundários por operadores brasileiros, seguirá assediando os atletas brasileiros, pois esses mercados existem em outras jurisdições.
As apostas em mercados secundários brasileiros não ocorrem somente no Brasil, na verdade, a maior parte delas se dá fora do país. Empresas sediadas em outros países, como Argentina, Colômbia, México, Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, Austrália, dentre outros ofertam apostas performances individuais de atletas atuando no Brasil: escanteios, faltas, assistências, desarmes, cartões, etc.
O risco da falsa solução
Proibir apostas em eventos individuais pode gerar efeitos perversos:
Criar uma falsa sensação de segurança para apostadores e operadores;
Incentivar a migração para o mercado ilegal, onde não há fiscalização, aumentando riscos de fraude e perda de arrecadação;
Cegar o regulador, já que movimentações suspeitas deixam de ser monitoradas em casas legalizadas. Hoje os alertas de movimentação suspeitas são pautados em volumes de apostas acima do normal, detectados por operadores de apostas. Se os operadores forem proibidos de oferecer esses mercados, deixarão de ter informações sobre os mercados secundários e, consequentemente, não terão como informar as autoridades brasileiras sobre indícios de manipulação, deixando-as às cegas.
A experiência internacional confirma essa preocupação. Quando o regulador sueco, por exemplo, proibiu apostas em cartões e faltas, especialistas internacionais alertaram que a medida era ineficaz, já que os manipuladores migraram para mercados paralelos, fora do alcance do sistema sueco. Resultado: menor proteção ao consumidor e maior exposição ao mercado ilegal.
O que realmente funciona?
Se o objetivo é proteger a integridade esportiva, as estratégias mais eficazes são:
- Educação de atletas e árbitros, preparando-os para resistir a tentativas de aliciamento;
- Fortalecimento dos sistemas de integridade nacionais e internacionais, com monitoramento contínuo e cruzamento de dados;
- Integração institucional entre Ministério da Fazenda, Ministério do Esporte, Justiça e órgãos de fiscalização; e
- Trabalho coordenado e de cooperação internacional, já que a manipulação de resultados é um crime transnacional: as autoridades brasileiras precisam atuar em conjunto com reguladores de outras jurisdições para compartilhar informações, identificar padrões suspeitos e bloquear redes criminosas que operam em múltiplos países.
Conclusão
A manipulação de resultados é um desafio real e crescente. Mas culpar os mercados de apostas individuais é errar no diagnóstico. Os dados mostram que a maior parte das manipulações ocorre nos mercados principais, onde há maior volume e liquidez.
Mais do que restringir mercados, o Brasil precisa investir em regulação inteligente, transparência, cooperação internacional e políticas públicas consistentes de integridade esportiva.
A resposta ao problema não está em proibir apostas em escanteios ou cartões, mas em construir um ambiente regulado, robusto e confiável, que proteja o esporte, os torcedores e os investidores.
Rafael Marchetti Marcondes
Professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA. Chief Legal Officer no Rei do Pitaco. Presidente da Associação de Bets e Fantasy Sport (ABFS).