A entrada no mercado regulado de bets online no Brasil em 1º de janeiro de 2025 tinha um preço alto. O bilhete de ingresso custava R$ 30 milhões pela licença de operação, mais R$ 5 milhões depositados em uma conta-garantia obrigatória, a comprovação de outros R$ 30 milhões em patrimônio líquido, além da montagem de toda a estrutura da empresa em solo nacional e de um pacote de medidas de proteção ao jogador que não sai por menos de R$ 40 milhões.
E isso sem contar o marketing — só o patrocínio da camisa do Flamengo vale R$ 268 milhões por ano, enquanto no Corinthians o valor é de R$ 103 milhões. O prêmio parecia compensar o risco e atraiu dezenas de empresas (hoje já são 97, donas de 167 marcas) para disputar um mercado que movimentou mais de R$ 35 bilhões em receita bruta apenas no primeiro semestre de 2025.
O perigo? Que todo esse investimento se tornasse inútil, já que o brasileiro continua tendo acesso a milhares de cassinos clandestinos na internet, que não arcam com nenhum desses custos para operar. "A regulamentação foi muito bem-feita e as bets legais dominaram o mercado muito rapidamente”, afirma André Gelfi, presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR). “Mas as ilegais se adaptaram na mesma velocidade e estão crescendo sem um combate realmente efetivo”.
A reviravolta começou já no segundo trimestre de 2025. De janeiro a março, o mercado legal havia capturado 55% das apostas online no país, impulsionado por campanhas agressivas de marketing. Bastaram, porém, três meses para a participação recuar para 45% — uma queda rápida que acendeu todos os alertas.
O motivo? Os operadores ilegais descobriram rapidamente como explorar cada nova regra criada para proteger o consumidor. A disputa entre as bets se tornou uma guerra assimétrica, travada em torno dos “três Ps”: preço, produto e promoção.
Sem pagar impostos nem cumprir a regulamentação, os sites clandestinos conseguem oferecer odds impossíveis de serem igualadas pelos concorrentes legais, bônus vetados às casas regulamentadas e um nível de facilidade de acesso quase automático, já que ignoram exigências como comprovação de idade, vínculo bancário, identificação facial e outras barreiras pensadas para proteger apostadores vulneráveis e coibir a lavagem de dinheiro.
Mais grave: as bets ilegais inundam o ambiente digital brasileiro com uma média de 22.000 novos conteúdos promocionais por dia, mirando sobretudo jovens abaixo de 35 anos por meio de influenciadores de médio alcance e de plataformas de mensagens criptografadas, como o WhatsApp e o Telegram, praticamente imunes à fiscalização.
Sem mecanismos de proteção, menores de idade apostam livremente e jogadores compulsivos — que nos sites legais seriam bloqueados por ferramentas de autoexclusão e limites atrelados à renda — encontram portas escancaradas. Casas somem da noite para o dia quando um apostador ganha valores significativos, deixando-o sem receber qualquer recurso.

Uma pesquisa do Instituto Locomotiva revelou que 61% dos apostadores brasileiros já fizeram ao menos uma aposta em plataforma ilegal em 2025. Mais preocupante: 72% admitem não conseguir distinguir um site legal de um ilegal.
Hoje, são 2.316 operadores clandestinos identificados, diante de apenas 167 com licença oficial, uma proporção de quase 14 para 1 que dimensiona o problema. “Todas as acusações que se fazem a respeito das bets — de que não pagam imposto, ludibriam os apostadores, exploram a ludopatia — só acontecem no mercado ilegal”, afirma Guilherme Figueiredo, diretor comercial da Betano. “Mas a má reputação vai para toda a indústria”.
O problema ganhou escala porque o combate às casas clandestinas foi, desde o início, pouco efetivo. Com uma estrutura de não mais que cinquenta pessoas — e apenas cinco dedicadas a fiscalizar toda a a internet —, a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, se limita a receber denúncias de sites ilegais e acionar a Anatel, a agência reguladora das telecomunicações, para bloqueá-los.
As bets ilegais, porém, já estavam preparadas: a cada endereço derrubado, outro surgia imediatamente, sem nenhum impacto relevante no negócio. Logo ficou claro que seria preciso atacar o ponto sensível da operação, os meios de pagamento, impedindo que os clandestinos recebessem o dinheiro dos apostadores.
Faltava, porém, definir quem teria autoridade para isso. No segundo trimestre de 2025, uma portaria atribuiu esse poder à SPA e estabeleceu punições severas para instituições financeiras que processem transações de apostas ilegais, mas a aplicação prática dessas regras ainda engatinha.
“É natural que os órgãos fiscalizadores passem por uma curva de aprendizado para combater organizações criminosas que já fazem isso há muito tempo, mas precisamos acelerar e intensificar esse movimento porque o prejuízo para a sociedade está cada dia maior”, diz Plínio Lemos Jorge, presidente da Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL).
A dificuldade não é exclusiva do Brasil. No mundo inteiro, autoridades penam para enfrentar operadores ilegais, que, em geral, estão sediados em outros países e se movem com a agilidade de quem não precisa lidar com burocracia para mudar de estratégia. Ainda assim, há lições de quem está nessa guerra há mais tempo.
As Filipinas conseguiram reduzir drasticamente a presença de clandestinos com uma ação coordenada, que mira simultaneamente os sites, os canais de comunicação, os meios de pagamento e os fornecedores dessas operações. Usando tecnologia de origem militar, desenvolvida para o combate a organizações terroristas, o país passou, a partir de 2023, a bloquear de forma efetiva o mercado ilegal e a manter um sistema de inteligência para mapear rapidamente as mudanças de rota dos criminosos.
Desde janeiro de 2023, quando essa estratégia foi adotada, o mercado clandestino das Filipinas caiu de 93% para 46% do total. “Derrubar sites e meios de pagamento é importante, mas, quando isso acontece, o apostador já está nas mãos dessas bets”, diz Ismail Vali, presidente da GCI, empresa que opera os softwares usados no país asiático. “É preciso impedir que as bets cheguem ao apostador, e isso só é possível se atacarmos os canais de comunicação, o marketing que atrai os clientes com promessas de retorno maiores e mais fáceis do que as legais, e sua cadeia de fornecedores”.
O contra-ataque começa, de fato, pela inteligência. A ANJL participou do desenvolvimento, em parceria com a empresa americana EtherCity, de um software capaz de rastrear sites de apostas ilegais e, ao simular um depósito via Pix, identificar os meios de pagamento e os titulares das contas, permitindo que a SPA peça o bloqueio das transações em conjunto com o Banco Central.
A ferramenta está em fase de testes e deve operar em escala no primeiro trimestre de 2026. Também está prevista para o início do ano uma nova portaria que impedirá que fornecedores dos clandestinos integrem a cadeia de suprimento das bets legais. É uma corrida contra o tempo: cada mês de atraso significa bilhões desviados e brasileiros expostos a fraudes sem nenhuma proteção. Quem comemora, por enquanto, é o crime.
Fonte: Veja