É inevitável que a regulação de um novo setor gere resistências. Ataques recentes promovidos pelo setor do varejo responsabilizam as apostas esportivas pela “insegurança alimentar” no Brasil e pela suposta perda de R$ 103 bilhões no varejo em 2024. Tais alegações, entretanto, ultrapassam os limites do razoável e exigem uma resposta técnica pautada em dados.
Em primeiro lugar, a afirmação ignora dados oficiais. O IBGE reportou crescimento de 4,7% no varejo brasileiro em 2024, o que refuta diretamente a ideia de retração causada pelas apostas no setor varejista. Não há, portanto, disputa real entre esses setores. Há uma construção retórica que mais desinforma do que colabora.
O segundo esclarecimento necessário parte de uma série de premissas equivocadas. Estudo do Banco Central apontou um o volume mensal de apostas transacionado via Pix entre R$ 18 e 21 bilhões em 2024, com estimativa de mais de R$ 200 bilhões movimentados no ano. Desse total, assume-se falaciosamente que R$ 103 bilhões teriam sido subtraídos do varejo.
Acontece que movimentação financeira gerada por uma casa de apostas não é sinônimo de receita e muito menos de lucro. Por expressa exigência do Ministério da Fazenda, as casas de apostas são certificadas por laboratórios credenciados e devem devolver aos apostadores percentual igual ou superior a 85% do total apostado (item 6.2 do Anexo I da Portaria SPA/MF nº 300/2024).
Ou seja, de cada R$ 100 apostados, no máximo R$ 15 ficam com os operadores e, no mínimo, R$ 85 voltam aos apostadores. Isso difere radicalmente do que foi dito. Assumindo esse patamar mínimo de retorno que o Governo exige dos operadores, e sem questionar os dados trazidos pelo Banco Central, temos que dos cerca de R$ 200 bilhões transacionados com apostas, ficaram com as casas de apostas, no máximo, R$ 30 bilhões, ignorando gastos operacionais e outros custos do negócio. Logo, é totalmente falaciosa a afirmação de que as apostas desviaram R$ 103 bilhões do varejo.
Outra alegação trazida á tona pelo varejo é que a legalização da atividade no Brasil apenas favoreceu à lavagem de dinheiro. Essa é uma afirmação, no mínimo, desonesta, pois acontece justamente o oposto.
Desde julho de 2024, quando houve a edição da Portaria MF 1.143/24[4], o Governo Federal passou a atuar com mais rigor no combate à criminalidade e para isso passou a exigir de todos os operadores a implantação de programas robustos de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo, com identificação reforçada de usuários (inclusive com prova de vida por meio de biometria facial), monitoramento 24/7 de transações suspeitas, comunicação ao COAF e a adoção de estrutura de compliance robusta.
O setor de apostas regulado conta atualmente com ferramentas para o combate à lavagem de dinheiro em muitos aspectos mais avançadas do que as próprias instituições financeiras.
O setor regulado só admite pagamentos rastreáveis, e os operadores contam com sede no Brasil, corpo diretivo mínimo estabelecido no país e ao menos 20% de capital social da empresa é detido por nacionais. Tudo isso para facilitar o monitoramento e controle por parte das autoridades brasileiras. O que favorece a lavagem é justamente a manutenção do mercado ilegal, fora do alcance da regulação, do fisco e do controle estatal.
O varejo insiste, ainda, em argumentar sem qualquer fundamento que o Poder Público estaria dando uma “isenção tributária” para as bets. Afirmam – de forma inverídica – de que o setor de apostas não paga tributos ou paga em patamares muito baixos. Pois bem, vamos, mais uma vez, aos números, visto que contra fatos, não há argumentos. Confira a seguir o que já é cobrado das casas de apostas:
12% de “gaming tax” sobre a receita bruta;
9,25% de PIS/COFINS sobre a receita bruta;
até 5% de ISS sobre o preço dos serviços prestados;
34% de IRPJ e CSLL sobre o lucro dos operadores;
taxa mensal de fiscalização que pode chegar a até R$ 2 milhões.
E isso antes mesmo da implementação da Reforma Tributária, que substituirá o PIS, a COFINS e o ISS pela CBS e pelo IBS e ainda irá passar a cobrar das casas de apostas o Imposto Seletivo. Todos esses tributos somados ao impacto da Reforma Tributária devem levar a indústria de apostas a sofrer no Brasil uma tributação que beira assustadores 50% da receita gerada, tornando o mercado local um dos mais onerosos do mundo.
A tentativa de associar as apostas à evasão, à lavagem e à desestruturação econômica ignora que o setor já gera dezenas de milhares de empregos no Brasil, especialmente nas áreas de tecnologia, atendimento, compliance, marketing e desenvolvimento de tecnologia. Estimativas apontam que o mercado legal de apostas deve gerar entre 150 mil e 200 mil empregos diretos e indiretos em 2025.
Mais do que atacar o setor, é preciso encarar com seriedade os riscos da sobrecarga tributária. Exemplo recente é o da Dinamarca, que aumentou a tributação sobre a receita bruta dos operadores de 20% para 28%, levando a uma fuga de operadores para o mercado ilegal. O mesmo pode acontecer no Brasil. Operadores já sinalizam que podem devolver licenças e reduzir investimentos caso a Medida Provisória 1303/2025 – que propõe o aumento do Gaming Tax de 12% para 18% – seja aprovada no Congresso Nacional.
Esse cenário se alinha ao conceito da Curva de Laffer, segundo a qual há um ponto ótimo de tributação a partir do qual aumentos adicionais de tributos não resultam em maior arrecadação, mas sim em queda da atividade econômica e incentivo à evasão fiscal. Quando a carga ultrapassa esse ponto de equilíbrio, o contribuinte busca meios de driblar a incidência tributária, e o mercado ilegal se torna a principal rota de escape.
O caso da China é ilustrativo: mesmo com proibição formal e repressão estatal, o país abriga aproximadamente 50% do volume global de apostas ilegais, movimentando cerca de US$ 1,7 trilhão por ano, conforme relatado por veículos internacionais como o South China Morning Post e o Reuters Institute. Essa realidade expõe como a repressão sem regulação efetiva e tributação equilibrada pode gerar o efeito oposto ao desejado.
As alegações do varejo de uma forma geral não são apenas tecnicamente equivocadas, são também politicamente perigosas. Canalizam a discussão para um falso antagonismo (varejo vs. bets) e, com isso, enfraquecem o foco que realmente importa: o combate ao mercado clandestino, que esse sim não paga impostos, não segue regras e não protege o consumidor, além de drenar receitas que poderia estar indo tanto para o varejo, quanto para os operadores de apostas regulados.
É preciso perguntar: a quem interessa fortalecer o mercado ilegal em detrimento de um ecossistema regulado, tributado e transparente?
Rafael Marchetti Marcondes
Presidente da Associação de Bets e Fantasy Sport (ABFS) e chief legal officer no Rei do Pitaco. Professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA.