A experiência internacional revela que, ao regulamentar o mercado de apostas, a definição da equação tributária é um dos pontos mais sensíveis e determinantes para o êxito da política pública. No Brasil, não é diferente. De um lado, há a legítima pretensão estatal de ampliar suas fontes de receita, cuja arrecadação, nos termos da Lei nº 14.790/2023, destina-se prioritariamente à seguridade social, ao fomento do esporte e ao financiamento da educação.
De outro, o excesso de carga tributária ameaça a própria sustentabilidade econômica das operações regulamentadas e, paradoxalmente, pode fortalecer o mercado ilegal que o próprio regime regulatório se propôs a enfraquecer.
Diante dessa tensão, surge a seguinte pergunta: qual é o ponto de equilíbrio capaz de manter o mercado atrativo para investimentos, proteger o consumidor e, ao mesmo tempo, assegurar uma arrecadação justa e sustentável para o Estado?
Foi justamente com esse propósito de equilíbrio que o legislador fixou, originalmente, um Gaming Tax equivalente a 12% sobre o Gross Gaming Revenue (GGR). Em junho de 2025, entretanto, a Medida Provisória nº 1.303/2025 majorou essa alíquota para 18%, ainda pendente de conversão em lei. Além do Gaming Tax, somam-se os outros tributos corporativos — IRPJ e CSLL —, as contribuições ao PIS/COFINS, o ISS, bem como o custeio regulatório, incluindo a outorga no valor de R$ 30 milhões (a cada 5 anos) e a reserva financeira no montante de R$ 5 milhões.
Na prática, a carga total sobre os agentes operadores (incluindo tributos, repasses e taxas) pode superar 50%, o que tende a se agravar caso a majoração para 18% seja confirmada e com o iminente imposto seletivo da reforma tributária. Mas quais são os riscos concretos que esse quadro representa para o mercado brasileiro?
O primeiro — e mais relevante — risco é a perda de competitividade dos operadores autorizados. Com margens reduzidas, essas empresas veem limitada a sua capacidade de oferecer odds competitivas, bônus atrativos e experiências de alta qualidade — recursos fundamentais para atrair e fidelizar apostadores. Nesse contexto, o apostador tende a migrar para plataformas não autorizadas, que, por não suportarem os mesmos encargos, conseguem apresentar condições aparentemente mais vantajosas.
Os dados confirmam essa preocupação. Pesquisas recentes revelam que muitos apostadores sequer identificam quais marcas são autorizadas, e em 2025 o Instituto Locomotiva apontou que 73% dos apostadores já recorreram a sites ilegais ao menos uma vez. Por fim, outro dado alarmante: considerando que cerca de 180 marcas estão autorizadas atualmente pela SPA/MF a operar no Brasil e mais de 18 mil sites de apostas ilegais foram bloqueados pela ANATEL, conclui-se que, desde a regulamentação do setor, apenas cerca de 1% dos sites de apostas disponibilizados aos brasileiros são autorizados.
Em termos de taxa de canalização (i.e., percentual dos apostadores brasileiros que apostam em operadores autorizados), estimativas do setor indicam que o mercado ilegal ainda representa entre 41% e 51% do total do mercado de apostas no Brasil. Em outras palavras, quando poucos apostadores migram para o mercado formal, frustra-se a arrecadação esperada pelo Estado e expõe-se o consumidor a riscos que a regulação buscou mitigar, como a falta de garantia no pagamento de prêmios, a ausência de políticas de Jogo Responsável e maior suscetibilidade a fraudes.
De acordo com estudo realizado pela Copenhagen Economics para o governo da Suécia, alíquotas entre 15% e 20% sobre o GGR tendem a preservar uma alta taxa de canalização, mantendo o mercado regulado competitivo e a arrecadação em níveis sustentáveis. Quando a carga tributária supera esse patamar — como ocorre no Brasil, em razão da incidência cumulativa de outros tributos — verifica-se queda simultânea na canalização e na receita fiscal, à medida que os operadores licenciados perdem competitividade frente ao mercado ilegal.
Por isso, buscar um ponto de equilíbrio vai além da mera discussão fiscal: trata-se de uma condição indispensável para garantir a sobrevivência e livre concorrência do mercado regulado e assegurar a proteção efetiva do consumidor.
Diante dessa possível majoração do Gaming Tax já no primeiro ano de mercado regulado, é absolutamente razoável que operadores autorizados, os quais pagaram cifras milionárias para iniciar suas operações no Brasil, passem a estudar a viabilidade da adoção de medidas judiciais cabíveis contra a União para “devolução da autorização” e restituição de parte do montante pago pela outorga federal.
O argumento central reside no rompimento da legítima expectativa construída no momento em que a outorga foi concedida, ocasião em que as condições econômicas eram outras. Para esses operadores, o aumento súbito da carga fiscal altera substancialmente a equação econômico-financeira que fundamentou seus planos de negócio e investimentos no Brasil, inaugurando uma relevante e necessária discussão jurídica: estariam os operadores amparados para buscar reparação ou recomposição frente a essa mudança?
Parte da doutrina sustenta que, como o instrumento de delegação do serviço público de apostas de quota fixa em âmbito federal se dá por meio de autorização (1), não se reconhece aos operadores direito subjetivo ao equilíbrio econômico-financeiro. Nessa perspectiva, a autorização — por sua natureza discricionária e precária — permite que condições econômicas, inclusive as de ordem tributária, sejam modificadas unilateralmente pela Administração Pública, sem que isso configure dever estatal de compensação.
Não obstante, uma corrente crescente argumenta que a outorga para exploração das apostas de quota fixa constituiria uma autorização qualificada (2), distinta de uma autorização simples. Partindo desse enquadramento — e considerando, ainda, o expressivo componente de interesse privado no setor — defende-se a aplicação, por analogia, da lógica do equilíbrio econômico-financeiro típica dos contratos de concessão, admitindo pleitos de recomposição ou compensação diante da majoração do Gaming Tax de 12% para 18%.
Esse debate tende a se intensificar nos próximos meses, com potencial de gerar judicialização e de impulsionar a busca por soluções regulatórias capazes de mitigar os efeitos da Medida Provisória nº 1.303/2025. Mais do que uma controvérsia sobre alíquotas, está em jogo a definição dos limites do poder regulatório do Estado e do grau de estabilidade necessário para que a iniciativa privada possa investir e operar com segurança em território nacional.
Udo Seckelmann
Advogado. Head do Departamento de Apostas e Criptoativos do escritório Bichara e Motta Advogados. LLM em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Professor da CBF Academy. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD-Labs). Membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ.
Pedro Heitor
Estudante de Direito na PUC-RJ, atua nas áreas de Cryptolaw e Gambling Law no Bichara e Motta Advogados desde 2022. Como analista, pesquisador e entusiasta, ele se dedica às dinâmicas jurídicas relacionadas à regulamentação de criptoativos, finanças descentralizadas (DeFi), apostas e jogos.
(1) Hely Lopes Meirelles define a autorização de serviço público como “o ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço, ou a utilização de determinados bens particulares ou públicos, que a lei condiciona à aquiescência da Administração”. Direito Administrativo Brasileiro, 14ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 164 (1ª ed. 1964).
(2) A outorga pode ser com prazo final fixado (autorização qualificada) ou com prazo final não fixado (autorização simples). CRETELLA JÚNIOR, José. Definição da autorização administrativa. Revista dos Tribunais, v. 92, n. 813, jul. 2003, p. 755.