VIE 26 DE ABRIL DE 2024 - 04:54hs.
José Renato Nalini, Reitor da Uniregistral

Legalização dos jogos de azar no Brasil: Falso moralismo ou hipocrisia?

José Renato Nalini reitor da Uniregistral e docente da pós-graduação da Uninove, publica uma nova coluna de opinião no jornal Estadão em defensa da legalização dos jogos de azar no país como já havia feito duas semanas atrás. 'Há uma dose considerável de hipocrisia na vedação do jogo e uma análise de custo/benefício para um País que não consegue oferecer trabalho para a sua juventude, precisaria pensar em opções viáveis', assegura Nalini.

Alguns assuntos ainda são tabus num Brasil que parece ter estacionado em outras eras. Um deles é a questão do jogo. Alega-se que permitir o jogo é incentivar a lavagem de dinheiro. Como se não houvera lavagem de dinheiro em tantas outras atividades aparentemente lícitas.

Não se joga no Brasil? O que significam as milhares de lotéricas em todas as cidades? E a jogatina que rola solta pela internet?

Os brasileiros que gostam de jogar vão para cassinos em países próximos, ou viajam constantemente a Vegas. Não existem cassinos clandestinos em funcionamento, sob conivência ou cumplicidade de quem deveria eliminá-los?

O momento brasileiro de calamidade pública seria minorado se voltassem os cassinos, que empregam milhares de brasileiros. Nunca houve tanto desempregado neste País. Mais de catorze milhões estão em busca de emprego e este fugiu. Cassinos acolheriam muitos deles. Não são apenas os encarregados de fazer funcionar a tavolagem. São garçons, cozinheiros, motoristas, chefs, maitres, recepcionistas. Sem falar na parte artística, ponto em que o Brasil sempre se destacou. Basta lembrar os gloriosos tempos do Cassino da Urca.

O que impede, na verdade, o retorno do jogo? Existe coisa mais confiável do que o chamado “jogo do bicho”? Quem aposta diz que o pagamento é efetivo, oportuno e justo.

Contudo, impera o artigo 50 da vetusta Lei das Contravenções Penais. O clássico Bento de Faria, que estudou essa categoria, lembrava que a doutrina distinguia entre crime e contravenção, seja recorrendo à teoria qualitativa, seja à quantitativa. Houve também quem sustentasse uma teoria eclética: qualiquantitativa. Além da circunstância diferencial da pena, existe na contravenção a violação potencial do direito, a possibilidade de perigo eventual, fato comissivo ou omissivo independentemente de culpa ou dolo e sem intenção de violar a lei.

A população estranha que alguns jogos sejam proibidos, enquanto outros são incentivados. A justificativa tradicional é a preservação da economia popular, objetivo que a prática paralela das loterias oficiais e incólumes à sanção penal evidentemente compromete. Em nada diferem, quanto à estrutura e substância, os jogos permitidos e os sancionados. Em todos eles, o caráter típico do jogo de azar: a esperança de lucro a realizar, sacrifício pecuniário, caráter público da operação e ganho obtido por sorte.

A consciência jurídica brasileira já descriminou o jogo do bicho. Cite-se a teoria tridimensional do Direito, elaborada por esse jusfilósofo gigante que foi Miguel Reale. Não pode a norma prevalecer, quando se altera o valor que inspirou sua edição. O ordenamento jurídico deveria se preparar e coibir outras práticas, muito mais danosas e, estas sim, causadoras de alarme social e lesivas à economia.

Não existe o valor de repúdio para o exercício do jogo, mas contra a corrupção que esfacela a confiabilidade em certos nichos de incestuoso conúbio entre Estado e empresariado. Punir o jogo do bicho, punir o jogo de azar, proibir cassino, é uma evidência de sistema normativo ineficaz, na proposição de Norberto Bobbio. Um sistema normativo é ineficaz quando existe descompasso insuperável entre o que suas normas dizem e o que os destinatários fazem. Normas há que se tornam impotentes, pois inadequadas frente à realidade social que pretendem regular.

As normas devem corresponder àquilo que a comunidade entende seja lícito e viável, razoável e direcionado à consecução do bem comum. Para evidenciar a desvalia da contravenção que proíbe jogo de azar, pode-se invocar o pai do normativismo, Hans Kelsen. Para ele, “uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente pelo menos numa certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia é a condição de sua vigência”.

O Judiciário brasileiro, que já foi tão atuante quanto à proteção da concubina, tão avançado em relação à filiação antigamente denominada ilegítima, que reconhece hoje a multi ou pluri parentalidade, que criou correção monetária, deveria reconhecer a falácia da proibição do jogo e liberar o retorno dos cassinos. Há uma dose considerável de hipocrisia na vedação do jogo e uma análise de custo/benefício para um País que não consegue oferecer trabalho para a sua juventude, precisaria pensar em opções viáveis.

Há coisas muito mais imorais do que o jogo de azar. Os que ainda defendem a proibição sabem disso. Ou todos os países que incentivam o jogo – e são muitos – podem ser considerados patrocinadores de práticas imorais?

 

José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2019-2020

Fonte: Estadão