JUE 25 DE ABRIL DE 2024 - 08:10hs.
ADPF 563

O PHS apresenta contrarrazões às informações prestadas pelo Congresso sobre jogos de azar

No marco da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 563, o Partido Humanista Da Solidariedade (PHS) enviou uma carta ao ministro-relator do STF, Edson Fachin, com suas contrarrazões aos dados e opiniões entregados pelo Congresso Nacional sobre a proibição da prática e da exploração de jogos de azar. O advogado do PHS, João Caldas da Silva, reafirma seu pedido de descriminalizar a atividade porque “o Estado proíbe, porém é o mesmo que explora o jogo de azar através das loterias” e reitera o requerimento de convocação de audiência pública para debater o tema.

Na ADPF 563 que o PHS ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF), Caldas da Silva parte do pressuposto de que “criminalizar a atividade econômica privada dos jogos de azar não é adequada e proporcional, seja pela inadequação do bem juridicamente tutelado pelo art. 50 da LCP e pelo Decreto-Lei 9.215, de 1946 (moral e bons costumes), seja porque o Estado que proíbe, é o mesmo que explora o jogo de azar”.

Na semana passada, o Senado enviou ao ministro do STF, Edson Fachin, relator da ADPF 563, um oficio orientando que o tribunal negue o pedido do partido, que defende que a proibição da exploração privada da atividade não é válida pela inadequação ao art. 50 da LCP e ao Decreto-Lei 9.215, de 1946. No documento, os parlamentares afirmam que a ação é uma tentativa de impor a opinião do autor e que para modificar a legislação ele deve trabalhar para aprovar um projeto de lei no congresso.

O documento do Senado respondeu o pedido feito pelo próprio Ministro Edson Fachin, em fevereiro. O magistrado enviou cartas aos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado Federal, Davi Alcolumbre, para solicitar informações acerca do pedido inicial do PHS.

A seguir, a carta completa que o PHS enviou ao STF com suas contrarrazões:

 

O PARTIDO HUMANISTA DA SOLIDARIEDADE (PHS), devidamente qualificado nos autos, nos termos da Lei nº. 9.868, de 1999, art. 9º, §1º, e do RISTF, arts. art. 21, XVII, e 154, III, vem à presença de Vossa Excelência apresentar suas CONTRARRAZÕES às informações prestadas pelo Congresso Nacional.

Em apertada síntese o Congresso Nacional alega que não há o fumus boni juris necessário ao deferimento da medida liminar solicitada pois existem várias propostas no Congresso Nacional destinados ao mesmo objetivo buscado na ADPF 563 e interferência inconstitucional nas atribuições do Poder Legislativo. Concernentemente ao periculum in mora, o Congresso Nacional afirma que as normas vigentes e a própria Constituição regulam de “forma satisfatória a proibição da prática e da exploração de jogos de azar e a apenação da conduta, bem como atuando positivamente nas expectativas dos atores sociais”.

Equivoca-se o Congresso Nacional. Com efeito, não se está requerendo a supressão da competência legislativa do Congresso Nacional. Isso ocorreria se houvesse anomia, ou seja, não houvesse regra legal regulando a matéria, e se se estivesse requerendo que o Supremo Tribunal Federal preenchesse a lacuna legal.

O que se requer na presente ADPF é análise da constitucionalidade da atual legislação vigente, o que se amolda perfeitamente à competência constitucional do Supremo Tribunal Federal, conforme disposto no art. 102, §1º. Não se trata, portanto, do alegado ajuizamento tardio. Da mesma forma, o tempo decorrido entre a entrada em vigor da norma atacada e a protocolização da presente ADPF é irrelevante. Com efeito, em face do fenômeno da mutação constitucional o STF, no exercício do controle de constitucionalidade concentrado, pode adaptar o sentido das normas constitucionais, sem alteração de texto, para adaptá-las a nova realidade política, econômica e social na qual a constituição está inserida.

Conforme alegou-se na inicial da presente ADPF, a exploração econômica do jogo era liberada à iniciativa privada e passou, de forma esdrúxula, a ser monopólio da União por meio de normas penais (art. 50 da LCP e do Decreto-lei nº 9.215/1946).

Com efeito, as normas impugnadas criaram de forma indireta uma reserva de mercado para a atividade econômica dos jogos de azar, que é explorada monopolisticamente pelo Poder Público. De fato, os jogos lotéricos explorados pela CEF e pelas Loterias Estaduais são considerados jogos de azar e sua exploração é lícita no Brasil. Conforme as normas impugnadas, não se proíbe o jogo de azar, apenas veda-se, sem justificativa plausível, a exploração desta atividade econômica por particulares. O art. 1º do Decreto-lei 9.215/1946 possui um sério problema de técnica-jurídica pois repristina a vigência do art. 50 da LCP, muito embora o mencionado artigo nunca tenha sido revogado. De fato, o Decreto-lei 4.866/1942, não revogou o art. 50 da LCP. Apenas excetuou da proibição prevista no dispositivo os estabelecimentos privados licenciados para explorar os jogos de azar, na forma do Decreto-lei 241/1938. Além disso, há no Decreto-lei nº 9.215/1946 uma clara contradição entre a motivação da norma e a consequência legal decorrente.

Conforme a exposição de motivos, a edição da norma teria sido motivada no imperativo da consciência universal de repressão aos jogos de azar, na legislação penal comparada – a qual conteria preceitos de repressão aos jogos de azar –, na tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e nos abusos nocivos à moral e aos bons costumes. Ainda que fosse coerente e verdadeira para a época a motivação da edição do Decreto-lei 9.215/1946, esta não mais subsiste nos dias de hoje. Os “bons costumes”, bem jurídico tutelado pelo art. 50 da LCP e pelo Decreto-lei 9.215/1946, é um conceito fluido, indeterminado que sofreu grande mutação conforme a sociedade evoluiu, se aperfeiçoou, se integrou e se aculturou com o contato com sociedades de outros países. Boa parte do que era contrário a moral jurídica e religiosa e aos bons costumes em 1946, provavelmente deixou de ser atualmente.  Apesar da motivação expressa, o Decreto-lei 9.215/1946 não proibiu o jogo de azar. Apenas criou uma reserva de mercado estatal que vem sendo explorada de forma monopolística pelo Estado. Deflui da norma que só o jogo de azar explorado pela iniciativa privada ofende a moral jurídica e religiosa e os bons costumes, enquanto o jogo de azar explorado pelo Estado, não.

A racionalidade deve marcar o direito penal, o qual deve ocuparse daquelas ações cuja danosidade social afete de modo grave os pressupostos imprescindíveis à convivência social. Nesse sentido, não se vislumbra nas normas impugnadas a legitimidade exigida pelo Direito Penal após o advento da Constituição Federal e a evolução do pensamento e do sentimento social.  Logo, não mais se justifica – se é que algum dia se justificou – que num Estado Democrático de Direito, calcado na dignidade da pessoa humana, que pressupõe a liberdade de autodeterminação, que se considere criminosa, por ofensa à moral jurídica e religiosa e os bons costumes, uma atividade que o próprio Estado explora.

Dados da Organização Mundial do Turismo (OMT) indicam que a grande maioria países filiados (71%) legalizaram o jogo de azar. No G20 93% dos paíes legalizaram o jogo de azar. Somente o Brasil, Arábia Saudita e Indonésia, ainda criminalizam o jogo privado. Na Organização das Nações Unidas (ONU), 147 dos 193 países membros (76%) têm legislação autorizando a iniciativa privada a explorar o jogo de azar. A maioria dos países, ao invés de proibir a exploração pela iniciativa privada dos jogos de azar, implantou um forte aparato regulatório para coibir as atividades ilícitas que eram associadas ao jogo e garantir a percepção de benefícios econômicos e sociais.

Outro efeito negativo dessa norma arcaica para o país é a perda de atratividade para grandes investidores estrangeiros do setor de turismo. Perdemos a oportunidade de gerar mais investimentos e empregos formais. Convivemos com um real cenário de ilegalidade e clandestinidade dos jogos e deixamos de aferir receitas tributárias significativas. Quando se observa as contradições acima apontadas nas normas impugnadas, fica patente a desproporcionalidade e o excesso de poder legislativo. Basta a leitura da motivação expressa do Decreto-lei 9.215/1946, para se constatar isto. Na Inicial da ADPF demonstra-se que não existia, e nem existe hoje, um “imperativo da consciência universal” de repressão dos jogos de azar. Explicita-se que não corresponde à realidade a afirmação de que “legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim”. Muito pelo contrário, o Brasil é dos poucos países do mundo que proíbe a iniciativa privada de explorar a atividade econômica dos jogos de azar.

Também não correspondia a realidade à época – e muito menos hoje – a justificativa de que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração e jogos de azar” e de que a exploração desta atividade econômica é nociva “à moral e aos bons costumes”.  As normas impugnadas criaram uma reserva de mercado para ser explorada unicamente pelo Estado. Assim, não é razoável admitir que só a exploração privada dos jogos de azar ofenda tradição a moral jurídica e religiosa e os bons costumes.  O art. 50 da LCP e o Decreto-lei 9.215/1946, ao tipificar como crime a exploração privada dos jogos de azar, criou artificialmente por intermédio do direito penal uma reserva de mercado para o Estado. Isso criou uma notória situação de desigualdade que ofende o direito fundamental de igualdade previsto no art. 5º, caput, e a previsão do art. 5º, XLI.

A manutenção da proibição não é razoável e nem proporcional. Nenhuma das motivações elencadas para a edição da norma se sustenta atualmente. A proibição imposta pelas normas atacadas não encontra sustentação e validade na Constituição de 1988.  O tipo penal do art. 50 da LCP e o Decreto-lei 9.215/1946, são um exemplo claro do dirigismo estatal quanto às liberdades individuais ao estabelecerem, sem motivo razoável, um tratamento desigual às pessoas físicas e jurídicas privadas, e ao preverem, na prática, que só o Estado está autorizado a explorar a atividade econômica dos jogos de azar.

Em matéria penal, o princípio da ofensividade vincula toda a atividade de interpretação e aplicação da lei. O STF (HC 104.410) consagrou o princípio da lesividade o qual está intrinsecamente conectado com o princípio da proporcionalidade, como limite não apenas à atividade judicial de interpretação/aplicação das normas penais, mas também à própria atividade legislativa de criação/conformação dos tipos legais incriminadores. Isso possibilita ao STF o exercício da fiscalização da constitucionalidade das leis em matéria penal. Nesse aspecto, verifica-se que criminalizar a atividade econômica privada dos jogos de azar não é adequada e proporcional. Seja porque pela inadequação do bem juridicamente tutelado pelo art. 50 da LCP e pelo Decreto-lei 9.215/1946, seja porque o Estado que proíbe é o mesmo que explora o jogo de azar.

A criminalização só se justifica para a manutenção do monopólio estatal. A ofensa à liberdade individual é patente. O indivíduo, se desejar fazer uma aposta, é obrigado a fazê-lo nos órgãos do Estado. Para exercer seu direito de apostar em empresas privadas, o indivíduo é obrigado a ira para o exterior ou praticar um crime.  Um dado revelador dessa incongruência é que o STF (CR 9970/Estados Unidos da América) e o STJ (REsp 1628974/SP) reconhecem a juridicidade das dívidas de jogo de azar contraídas no exterior e admitem a sua cobrança judicial.

Ou seja, a dívida de jogo de azar contraída em estabelecimento privado no exterior pode ser cobrada no Brasil porque não atenta contra a ordem pública e “os bons costumes” e, portanto, não encontra óbice no art. 50 da LCP e no Decreto-lei 9.215/1946. A Constituição Federal optou por um sistema capitalista, no qual é primordial o papel da livre iniciativa. O STF (AC 1.657-MC) fixou o entendimento que o caput do art. 170 encerra uma cláusula geral, cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo, e que estes princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, mas como social, e que pode, consequentemente, ser limitada. A limitação, todavia, não pode ser desproporcional e nem desarrazoada, sob pena de ofensa constitucional.

Nesse sentido, ofende a regra da livre concorrência a manutenção do monopólio da atividade econômica dos jogos de azar pelo Estado, sem justificativa e sem observar a regra do art. 173 da Constituição. Nenhuma das exigências constitucionais que autorizam a exploração direta de atividade econômica em sentido estrito pelo Estado foi atendida pois a exploração dos jogos de azar não é necessária aos imperativos da segurança nacional e nem possui relevante interesse coletivo definido em lei.

Em respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, a intervenção estatal na iniciativa privada de exploração dos jogos de azar deveria ocorrer mediante a normatização e regulação por intermédio da fiscalização e do incentivo (art. 174, caput).  O art. 50 da LCP e o Decreto-lei nº 9.215/1946, só se justificam no atual estágio da vida social brasileira para a manutenção do monopólio estatal dos jogos de azar, em detrimento da livre iniciativa. Não há qualquer justificativa estratégica do ponto de vista econômico ou social para manter a exclusividade do Estado. A contrariedade às normas constitucionais fica ainda mais patente quando se observa que o Estado editou a Lei 13.756/2018, que derrogou a alínea “c” do § 3º do art. 50 da LCP, legalizando o jogo esportivo em que apostador sabe quanto ganhará e abrindo à iniciativa privada a possibilidade de explorar este tipo de jogo de azar que poderá, inclusive, ser feito on line (art. 23).

DO PEDIDO

Diante do exposto, em face da grande relevância social, política, econômica e de política criminal, REITERA-SE O REQUERIMENTO DE CONVOCAÇÃO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA para colher o depoimento de autoridades e membros da sociedade em geral que possam contribuir com esclarecimentos técnicos e jurídicos sobre a descriminalização da exploração do jogo pela iniciativa privada.

 

Fonte: GMB