MAR 16 DE ABRIL DE 2024 - 01:44hs.
OPINIÃO - Camila de Assis Santana Silva, Advogada criminalista

O futuro da cultura da 'fezinha' em pauta no Supremo Tribunal Federal

A iminência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal acerca da eventual descriminalização da exploração privada dos jogos de azar reacende a discussão sobre o tema. Camila de Assis Santana Silva, advogada criminalista e membro do escritório Kehdi e Vieira, apresenta para a Revista Consultor Jurídico uma breve análise sobre o assunto, alheia às perspectivas econômicas, éticas, morais ou religiosas que norteiam as posições contrárias ou a favor da (des)criminalização dessa prática contravencional.

Não é de hoje que debates sobre princípio legislativos acabam sendo resolvidos pelos ministros da nossa cada vez mais política Suprema Corte. A iminência do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal acerca da eventual descriminalização da exploração privada dos jogos de azar reacende a discussão sobre o tema.

Propõe-se aqui uma breve análise sobre o assunto, alheia às perspectivas econômicas, éticas, morais ou religiosas que norteiam as posições contrárias ou a favor da (des)criminalização dessa prática contravencional.

Antes de adentrar, no entanto, especificamente na discussão em pauta no STF, são necessários alguns esclarecimentos, pois é preciso entender que nem toda prática de jogos que dependem da sorte configura uma infração penal.

Em diversos países, o mercado de jogos de azar é legalizado. O Brasil é um dos poucos que o tipificam, na contramão da Austrália, da França, do Canadá, do Reino Unido e dos Estados Unidos, por exemplo.

Na nossa legislação (artigo 50, §3º, DL 3688/41), jogos de azar são aqueles em que ganhar não depende das habilidades de quem joga. O resultado é aleatório e ditado total ou parcialmente pela casualidade. Assim, inserem-se no conceito legal caça-níqueis, roletas, bingos, videopôquer; blackjack (o famoso 21), apostas esportivas, apostas sobre corridas de cavalos, quando não realizadas nos locais autorizados, e máquinas eletrônicas de concursos prognósticos em geral. Para configurar a contravenção, contudo, devem ser explorados em local público ou acessível ao público (§4º do mesmo artigo).

A respeito do pôquer, em particular, ainda não há um entendimento pacífico na jurisprudência. Há uma corrente que o exclui do rol de jogos considerados de azar, pois "conquanto a sorte, sem dúvida, seja elemento presente em um jogo de pôquer (...) é inegável a importância (...) de habilidades do jogador".

No que concerne às apostas envolvendo brigas de animais (rinhas), vale destacar que, como não se trata de contravenção penal, mas de crime ambiental capitulado no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, independentemente do desfecho da discussão no STF, essa atividade seguirá tipificada.

A exploração não autorizada de loterias também é proibida — mas por outra norma penal. Atualmente, apenas as loterias promovidas pela União ou pelos estados estão excluídas do crivo penal, conforme dispõe o artigo 3º do Decreto-Lei nº 6.259/44, que, noutro giro, prevê outras práticas contravencionais, como a exploração do "jogo do bicho".

Nesse cenário, também entram como exceção à lei penal os sorteios de prêmios realizados por empresas com fins de marketing quando autorizados pela Caixa Econômica Federal. Isso significa que, de acordo com o artigo 17 da Lei nº 5.678/71, são ilícitos, por exemplo, quaisquer sorteios não autorizados em redes sociais que buscam o engajamento de seguidores.

Por fim, a Lei nº 13.756/18, em síntese, permite a particulares, mediante autorização, operar "casas de apostas" esportivas. Ainda estão sendo realizados estudos, no entanto, para a desestatização e implementação da atividade, nos termos do Decreto nº 10.467/20.

Como se vê, há uma razoável variação sobre o que é proibido ou não no universo dos jogos de azar, e essa oscilação também pode ser observada historicamente no que diz respeito à própria opção por criminalizar ou não a sua exploração.

Em 1941, proibiu-se o mercado dos jogos de azar no Brasil por meio da Lei de Contravenções Penais. Durante um período da "era Vargas", contudo, a atividade foi liberada, e depois novamente criminalizada por meio do Decreto-Lei 9.215/46, que apontou como motivos da proibição a ofensa à tradição moral jurídica e religiosa do povo e à moral e aos bons costumes da sociedade da época.

Transpondo tais justificativas para os dias atuais, não raro se questiona se tais valores ainda merecem tutela penal. Em outras palavras: existem valores coletivos e constitucionais que justifiquem a atuação do aparelho punitivo do Estado contra a exploração dos jogos de azar?

Essa indagação levou à discussão que hoje está em pauta para julgamento no Supremo Tribunal Federal, sob o regime de repercussão geral (Tema 924). O debate teve início com a interposição do Recurso Extraordinário nº 996.177 pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, em face de decisão do Tribunal de Justiça daquele estado, que entendeu pela atipicidade das condutas previstas no artigo 50 da Lei de Contravenções, porque tal dispositivo legal não teria sido recepcionado pela Constituição Federal.

A decisão gaúcha pôs em xeque a constitucionalidade do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais sob o prisma do princípio da proporcionalidade. Aduziu-se que os "bons costumes", bens jurídicos tutelados pela norma penal, constituem conceito mutável, que se ressignifica constantemente em razão das transformações sociais.

Além disso, entendeu-se na decisão que ensejou o recurso ministerial que a opção por jogar ou não é intrínseca ao exercício do direito de autodeterminação do indivíduo e, portanto, alheia aos interesses que atraem a tutela estatal. Por fim, apontou o TJ-RS que tal prática não teria o condão de causar ofensas a qualquer bem jurídico transindividual ou mesmo de terceiro — o que, novamente, afastaria a necessidade de tutela penal.

Evidentemente, no caso de se concluir no julgamento do STF pela constitucionalidade do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais, ainda assim o debate poderá (e deverá, em nossa opinião) ser levado ao Legislativo, para que o crime seja abolido. Na realidade, já existem alguns projetos de lei sobre o assunto, tais como o PL nº 442/91, em trâmite na Câmara dos Deputados, e os PLs nºs 186/2014, 595/15, 2648/19 e 4495/20, em trâmite no Senado. Qualquer um desses projetos, se aprovado, constituiria verdadeiro marco legal no que tange à exploração de jogos de azar no Brasil.

Por outro lado, na hipótese de se entender que o artigo não foi recepcionado pela Constituição Federal, a exploração privada dos jogos de azar deixará de ser considerada típica no Brasil, o que terá significativos impactos tanto nas investigações e processos em curso, que deverão ser arquivados ou trancados, quanto nas condenações definitivas — nesse caso, haverá de ser cessado o cumprimento das penas e reestabelecida a primariedade dos acusados.

Veja-se que isso não quer dizer que no âmbito administrativo não se poderá manter uma vedação ou restrição à atividade, por opção estatal. Nessa hipótese, a conduta em desacordo com as normativas não produziria mais efeitos na esfera penal, mas estaria sujeita a penalidades de natureza administrativa.

Em conclusão, é necessário sublinhar que, mesmo havendo ampla discussão acerca da criminalização da exploração dos jogos de azar, inclusive com as citadas propostas legislativas, e mesmo sendo a autorização e a regulamentação tendências mundiais, a prática ainda é considerada uma contravenção penal no Brasil e o TJ-RS — que inaugurou a discussão que será objeto de julgamento no STF — tem se mantido isolado e na contramão dos outros tribunais brasileiros, que reiteradamente reconhecem a vigência e a aplicabilidade do artigo.


Camila de Assis Santana Silva
Advogada criminalista, membro do escritório Kehdi e Vieira Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e Corporativo pelo Instituto de Direito Público de São Paulo — IDP-SP (2019).
Especial para Revista Consultor Jurídico