Quem acompanha o mercado de apostas no Brasil sabe que o tema nunca foi tão debatido. A promulgação da Lei nº 14.790/2023, a chamada “Lei das Bets”, foi um marco importante: acabou com um vácuo regulatório de anos e abriu espaço para um setor bilionário sair da sombra.
Claro, a lei não nasceu perfeita e nem poderia, mas é inegável que trouxe avanços e, desde então, o tabuleiro jurídico vem se movimentando: Supremo Tribunal Federal (STF) de um lado, estados de outro, mercado testando limites. É como numa partida de xadrez: cada lance revela acertos, erros e, sobretudo, o que ainda precisa ser ajustado para o jogo seguir de forma justa e competitiva.
Por que a lei foi necessária
Até pouco tempo atrás, o setor de apostas no Brasil era um campo aberto. Empresas faturando alto, consumidores expostos e o país sem arrecadar praticamente nada. A Lei 14.790 mudou esse cenário: criou regras mínimas, trouxe segurança jurídica e deu ao Estado o direito de participar de um jogo que já acontecia de forma massiva. Apesar de não ser a lei dos sonhos, é melhor ter um quadro regulatório imperfeito do que viver em terra de ninguém. Isso é um ponto que não dá para relativizar.
O tabuleiro jurídico em movimento
Alguns dispositivos da lei nasceram adversos e precisaram ser corrigidos. O bom é que o STF e até mesmo o próprio mercado têm feito esse papel de ajuste.
1. União no comando, estados com espaço
A Constituição é clara: cabe à União legislar sobre loterias (Art. 22, XX). O STF reafirmou isso, mas garantiu que os estados não podem ser sufocados em sua arrecadação. Essa divisão é fundamental para que exista unidade regulatória sem destruir a autonomia local.
2. O equívoco das amarras geográficas
Um dos maiores erros foi limitar uma empresa a atuar em apenas um estado. Em pleno ambiente digital, isso era praticamente um contrassenso. Felizmente, o STF derrubou essa barreira, abrindo caminho para operações multiestaduais. Competição maior significa serviço melhor e consumidor mais protegido.
3. Publicidade sem fronteiras ingênuas
Restringir publicidade ao território estadual era outra limitação sem sentido. Basta imaginar um clube patrocinado por uma bet disputando torneio continental com a camisa “limpa” porque a marca não poderia aparecer fora do estado.
A Corte já resolveu: publicidade pode ultrapassar fronteiras, desde que não haja oferta indevida. O foco passa a ser responsabilidade. E, convenhamos, com as ferramentas de geolocalização de hoje, controlar acesso é coisa simples.
4. Associações de estados: a peça que falta
Aqui está um ponto que ainda emperra: a proibição de estados se unirem para criar loterias conjuntas. O histórico mundial mostra o contrário: algumas das maiores loterias nasceram justamente dessa soma de forças. Mais estados = mais escala = prêmios maiores.
O que explica a trava brasileira? O receio de ferir o monopólio da Caixa. O problema é que, nos bastidores, a Caixa já anda abordando alguns estados. E a pergunta que fica é: o que será que ela tem a oferecer? Mais do mesmo? Mais agências vendendo os mesmos produtos defasados?
O recado é direto: os estados precisam fazer o que a lei lhes permite. Criar suas próprias loterias, com produtos modernos e prêmios competitivos é um dever, não uma opção. Quem se contentar em apenas repetir o modelo tradicional vai perder a chance de transformar arrecadação em políticas públicas relevantes.
5. A “jabuticaba” dos municípios
Aqui entra mais uma grande distorção: a tentativa de empurrar loterias municipais. É preciso dizer de forma clara: não existe, em nenhum lugar do mundo, indicativo de que municípios tenham competência para regular ou explorar apostas.
Isso vem sendo defendido por advogados que ficaram de fora da assessoria das grandes operadoras e buscam mercado para atuar. Só que, nessa ânsia, ignoram o dano que podem causar. Fragmentar a regulação em milhares de pequenos entes seria um caos para a fiscalização, a credibilidade e a sustentabilidade do setor.
O jogo não acabou
A Lei 14.790 foi o primeiro movimento de uma longa partida. Trouxe avanços claros, mas também deixou desafios no ar.
O futuro desse mercado passa por:
União regulando de forma geral, com estados explorando o que lhes cabe.
Operações multiestaduais sem restrições artificiais.
Publicidade responsável, mas sem fronteiras irreais.
Estados fazendo a lição de casa e criando suas próprias loterias, sem se esconder atrás da Caixa. E, de forma urgente, o fim da ilusão das loterias municipais.
O Brasil tem a chance de construir um mercado de apostas competitivo, moderno e justo. Para isso, precisa coragem para corrigir distorções, derrubar privilégios e fazer a jogada na hora certa. Aos poucos as peças mau posicionadas vão saindo do tabuleiro. Torcemos sempre para o próximo lance ser de fato pelo bem da população e do mercado. Avante.
Daniel Romanowski
Presidente da Lottopar