SÁB 4 DE MAYO DE 2024 - 08:13hs.
MARCELLO M. CORRÊA – advogado ex-diretor jurídico da Loterj

Loterias Estaduais: 30 dias após o julgamento no Supremo Tribunal Federal e algumas reflexões

Em artigo para o GMB, Marcello Corrêa, ex-Diretor Jurídico da Loterj, analisa o julgamento do STF que acabou com o monopólio da União para exploração de loterias. Para ele, além de histórica, a decisão já provoca a busca por mais informações jurídicas por parte de Estados para o início de operações regionais e é importante que os entes percebam que terão de traçar um paralelo com as modalidades de loterias presentes na legislação federal. “Não poderão explorar bingos nem máquinas caça-níqueis”

Como relatamos, anteriormente, naquela tarde histórica de 30 de setembro de 2020, com a Presidência do Min. Fux e com voto condutor do Min. Gilmar Mendes, a Corte Constitucional brasileira, por unanimidade, confirmou a necessidade de tratamento isonômico entre a União e os demais entes da Federação, com relação à capacidade de explorar serviços públicos de loteria, desde que respeitados os contornos traçados pelas leis federais.

Em retrospecto sumário, o Estado do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE), em outubro de 2017, ingressaram no STF objetivando a declaração de não recepção de dispositivos do Decreto-Lei n. 204/67 pela Carta Política de 1988. O Decreto-Lei trazia dispositivos que impediam alguns Estados de explorar suas loterias com plenitude e outros que sequer poderiam fazer tal exploração. Novamente em resumo, tais situações não encontram amparo na Constituição brasileira, como ficou muito bem delineado nos votos dos Ministros do Supremo.

Então, nesses últimos 30 dias, recebemos algumas consultas, participamos de teleconferências e nos deparamos com algumas reflexões que, por sua vez, serão destacadas no presente artigo, cuja finalidade é estimular o debate entre os agentes públicos e privados.

A primeira delas é a construção do marco regulatório para as loterias estaduais. Aquela Corte assegurou um direito de simetria, vejamos um trecho do voto do Min. Gilmar Mendes: “(...) Isso porque o art. 22, XX, da Constituição confere competência privativa da União apenas para legislar sobre a matéria. Sendo a competência prevista apenas formal, a esse dispositivo não se pode conferir interpretação estendida para também gerar uma competência material exclusiva do ente federativo, que não consta do rol taxativo previsto no art. 21 da Constituição”. Em linhas mais simples, aquilo que for tratado em lei federal como serviço público de loteria, caberá aos demais entes aprofundarem os respectivos modelos de exploração.

Daí que o mesmo Ministro arremata: “(...) Tais normas estaduais, sejam leis ou decretos, apenas ofenderiam a Constituição Federal caso instituíssem disciplina ou modalidade de loteria não prevista pela própria União para si mesma, haja vista que, nesta hipótese, a legislação estadual afastar-se-ia de seu caráter materializador do serviço público de que o Estado (ou município, ou Distrito Federal) é titular, isto sim incompatível com o art. 22, XX, da CF/88”. 

Com efeito, aqueles entes federados que desejarem explorar serviços de loteria, terão que traçar um paralelo com as modalidades de loterias (ou jogos que recebam apostas) presentes na legislação federal, podendo, inclusive, utilizar do decreto como fonte normativa interna em certas condições. Continuando e pegando um exemplo extremo, os estados (e os municípios) não podem explorar bingos – eles não possuem essa autonomia, pois a lei federal não possui tal previsão. Pelo mesmo motivo: eles também não podem explorar máquinas de caça-níqueis (que é diferente de máquinas de venda de bilhetes). Pode parecer até infantil dar esses exemplos, mas, por incrível que pareça, fomos questionados sobre tais temas. 

Outra reflexão é sobre o modelo de exploração. Cabe verificar se o modelo será de exploração direta (contratando serviços) ou mediante concessão. Para cada modelo macro, vamos assim chamar, o regime jurídico aplicável é diferente (Lei n. 8.666/93 e Lei n. 8.987/95). A escolha do regime influencia diretamente no modelo de contratação, objeto, tempo de vigência e, principalmente, no modelo econômico-financeiro da exploração.

Vamos ilustrar um pouco. Supondo que o regime de concessão seja o modelo preferido, sobretudo porque permite mais investimentos em função dos prazos para amortização do capital, neste regime se fala em modicidade da tarifa (artigos 6 e 11 da Lei n. 8.987/95), ao mesmo tempo que se fala em valor da outorga (art. 15, II da mesma lei). Mais uma vez indo direto ao ponto: existe uma correlação entre a tarifa (que se tratando de loteria será o preço do bilhete) e o valor da outorga, pois, quanto maior for o valor da outorga, maior será o impacto na composição do preço do bilhete ofertado ao público. E, considerando que as concessões são contratos públicos com vigência de longo termo, a modelagem do certame será crucial para estabelecer uma relação econômica sustentável entre o poder concedente e o concessionário (economicidade do contrato).

Ainda falando de concessão no setor de loteria e por mera ilustração, vamos deixar claro, surgiu um questionamento sobre a possibilidade de fundos de investimentos participarem dos certames e, consequentemente, obterem contratos de concessão. Trata-se de uma ideia muito radical, não é mesmo? Para começar, é salutar que a Administração Pública busque selecionar a melhor proposta entre as pessoas jurídicas qualificadas, isto é, com algum histórico de realizações no setor da concessão. Um fundo de investimento, de partida, não teria tal qualidade. Ele pode ingressar no capital das companhias ou lhes emprestar recursos, mas não pode atuar diretamente como concessionário de serviço público, pois sua natureza é de veículo de investimento – por essa simples abordagem, não nos parece ser uma opção viável em vários sentidos.  

Outra reflexão é sobre o conhecimento do mercado e seu apetite real. Há poucos estudos sobre o brasileiro apostador - seus hábitos de consumo em relação às apostas. Todos sabem que o Brasil é um enorme mercado, mas qual é o seu tamanho exatamente? E quais jogos serão atrativos? E os aspectos regionais? Esses estudos são relevantes, concordam?

Não querendo alongar muito, temos ainda o seguinte tema: a cultura da Administração Pública brasileira. Só esse tema mereceria um tratado, vale notar. Conhecer modus operandi da Administração é fundamental para ter sucesso nas contratações em foco. O Brasil tem uma tradição cartorial, vamos assim dizer, e isso significa pouco ou nenhum incentivo aos agentes públicos no que diz respeito à utilização de técnicas de composição e superação de conflitos no curso da relação contratual. Então não basta conhecer as regras, mas é preciso compreender quais são os mecanismos de incentivos e de cooperação possíveis entre os agentes públicos e privados no curso de um contrato. 

Diante dessas reflexões, a mensagem que gostaríamos de deixar é: cautelas ainda são necessárias nesse novo horizonte, tanto para o aprimoramento jurídico-regulatório, quanto para atração dos investimentos almejados pelo Poder Público.


Marcello M. Corrêa

Advogado e Mestre em Ciência Política, ex-diretor jurídico da Lojerj, com mais 20 anos de experiência com o setor público e autor de artigos sobre Direito Administrativo e Econômico.