Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu que os Estados-Membros e o Distrito Federal podem explorar o serviço público de loteria, dando fim a um impasse que durou anos no direito brasileiro. A corte constitucional brasileira declarou a nulidade de dispositivos do Decreto Lei 204/67 (art. 1º, caput, e 32, caput e §1º) e entendeu que a prerrogativa da União federal de legislar sobre a matéria de loterias não afasta a competência material dos entes subnacionais.
Mas, afinal de contas, até onde vai a competência destes entes federados na administração da atividade lotérica em âmbito regional? Nossa pretensão é de tecer algumas notas e fomentar o debate acerca da mais adequada interpretação da decisão do STF.
De partida, sabe-se que é somente a Constituição Federal que distribui as competências entre os entes federados: União, Estados, Distrito federal e Municípios.
Portanto, na vigência da atual Carta Constitucional, os entes federados não estão na condição de subordinados ou administrados da União, sendo vedada qualquer pretensão de submeter os Estados à condição hierarquicamente inferior, dependentes e sem autonomia. Repete-se: somente a Constituição Federal vigente, poderia, em tese, alterar esta relação entre a União, os estados e o Distrito Federal.
A autonomia é fundamental no reconhecimento e promoção de diversidade regional e o estabelecimento de modificações institucionais em menor nível que, em caso de sucesso regional, podem ser adotadas pelo governo central ou outros entes subnacionais. Segundo a doutrina de Anna Cândida da Cunha Ferraz, a autonomia dos entes federados é constituída pelas capacidades de auto-organização, autogoverno, auto legislação e autoadministração.
As competências materiais, por sua vez, conforme leciona Fernanda Dias Menezes de Almeida, desdobram-se em ordem administrativa e ordem financeira. As duas ordens deverão servir para “viabilizar” o exercício do serviço público, nos termos da ratio decidendi do acórdão do STF na ADPF 492 e 493.
A autonomia estadual se expressará tanto para instituir Produtos Lotéricos estaduais lastreados nas Modalidades Lotéricas previstas em lei federal, quanto para a criação de um ente integrante da Administração Pública que exercerá funções de uma Loteria.
O funcionamento desta Loteria, bem como do serviço que ela administra, depende necessariamente do exercício da competência material em ordem administrativa e financeira e, deste modo, a Loteria Estadual deve se autor regulamentar, minimamente, sobre as seguintes regras: i) a quantidade, para emissão de “bilhetes, listas, cupons” etc., por evento; ii) a periodicidade dos sorteios; iii) a comercialização dos produtos lotéricos em ambientes físicos ou não físicos (on-line); iv) a destinação das receitas da Loteria[4]; v) regras para exploração direta e condições exigidas do operador para exploração indireta dos produtos, seja por credenciamento, autorização ou contratação de permissionários e concessionários; e vi) homologação a bem do interesse público da criação de produtos lotéricos, amparados nas modalidades lotéricas e seu próprio layout, forma de controle, publicidade, regras de proteção e prevenção da ludopatia, fiscalização, divulgação de resultados, padrões de segurança e de certificação, entre outros temas necessários a viabilizar o funcionamento “adequado” do serviço público.
O conteúdo destes aspectos necessariamente deve estar à disposição do gestor da Loteria estadual (ou Distrital) para sua avaliação, como corolário da dimensão administrativa e financeira da competência material dos estados e do Distrito Federal, pois só assim o funcionamento do serviço público poderá ser adequado e atual: “adequado” na medida que satisfaz condições de regularidade, continuidade, eficiência e segurança; e “atual”, porquanto garante a modernidade das técnicas, do equipamento e instalações, conforme define o artigo 4º, §2º da lei federal 8.987/1995 e o art. 175 da CF/88.
Só a proximidade entre o tomador da decisão política regional e a administração lotérica é capaz de garantir os predicados mencionados acima, sob pena de se macular a uma só vez a competência de ordem administrativa e de ordem financeira do ente federado na administração da Loteria. Infringir uma dessas ordens de competência seria infringir a competência material; logo, violaria o comando do STF quando este atribuiu competência material para exploração e regulamentação de serviços lotéricos dos Estados.
Se assim não fosse, não teria o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das referidas ações, afastado o art. 32, §1º, DL 204/67, que limitava as emissões, quantidades e séries de bilhetes pelas loterias estaduais, matéria de teor administrativo e ligado à viabilidade da Loteria.
Ademais, além de compor o rol de atividades essenciais à atividade lotérica, a fixação do payout insere-se dentro da competência legislativa dos Estados-membros, especialmente quando fixado de forma mais favorável que o previsto em legislação federal. Isto porque a proteção do direito do consumidor (e também do usuário de serviço público) é matéria de competência concorrente, nos termos do art. 24, VIII, da CF/88. Também a fixação de alíquota de destinação para demandas sociais regionais se insere em rol de competência legislativa concorrente (art. 24, II, da CF/88), posto que, ao aludirem receita não-tributária originada da atividade lotérica estadual, possuem natureza jurídica de norma de vinculação pré-orçamentária.
Portanto, o reconhecimento da competência material e a declaração de invalidade do Decreto-Lei n. 204/67, art. 1º, caput e 32, caput e § 1º, reconhecidas pelo STF no julgamento da ADPF 492 e 493, equivale à admissão da induvidosa competência administrativa e financeira, atribuída exclusivamente à Loteria Estadual (e Distrital), no âmbito de seu território, para viabilizar o serviço público de Loteria.
Com efeito, diante da sistemática de divisão de competências estabelecida pelo julgado do STF, com trânsito em julgado em 2 de fevereiro de 2021, coloca-se à União a oportunidade de exercer um papel dialógico consensual com entes subnacionais, no âmbito de um federalismo de cooperação, visando efetivar direitos fundamentais de maneira complementar, em graus de variáveis graus de proteção, em atenção à diversidade e pluralidade federativa, com foco no atendimento das necessidades do cidadão.
Roberto Carvalho Brasil Fernandes
Alexandre Amaral Filho
Rafael Biasi
Advogados do Brasil Fernandes Advogados Associados