VIE 5 DE DICIEMBRE DE 2025 - 03:34hs.
Milton Jordão, advogado

Por que querem barrar as loterias municipais? O debate no STF e a autonomia federativa

A exclusão dos Municípios da exploração de loterias representa uma violação direta ao Pacto Federativo. Negar essa competência não apenas enfraquece a autonomia financeira regional, mas impede que cidades cumpram plenamente suas obrigações constitucionais em áreas sociais. Esse é o entendimento do advogado Milton Jordão em artigo para o Lei em Campo. Para ele, a operação local preenche uma lacuna e atua como inibidor da fuga de operadores para o mercado ilegal.

O Supremo Tribunal Federal é instado mais uma vez a enfrentar um grande desafio: a Constituição Federal autoriza a criação e funcionamento das Loterias Municipais?

Essa pergunta nasce do questionamento feito na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1.212), em virtude da crescente proliferação de Loterias Municipais, que ganharam força após o julgamento no STF sobre a legalidade e funcionamento das Loterias Estaduais, nas ADPFs 492 e 493.

Em síntese, o Tribunal Constitucional afirmou que a União não tem exclusividade para explorar loterias, sendo lícito aos Estados explorar modalidades lotéricas, muito embora estes não possuam competência para legislar sobre a matéria. Ou seja, deverão se guiar pela legislação em vigor, no caso, a Lei nº 14.790/2023. Eis, pois, o nó górdio que o STF irá desatar em relação aos Municípios.

O nó górdio: Monopólio da União vs. Autonomia Municipal

A questão nasceu por insatisfação da Secretaria de Prêmio e Apostas (SPA) — a União — que passou a ver o “bolo” sendo repartido entre novos players, no caso, Estados e Municípios. O mercado de apostas e jogos online é muito atrativo e rentável, com um potencial de geração de impostos elevadíssimo.

Ficou posto que o STF entendeu como possível aos Estados e ao Distrito Federal explorar esse novo mercado, podendo instituir regras que sejam admissíveis dentro do que estabeleceu a lei federal. E, naturalmente, surge a pergunta: e os municípios, podem?

A lei é lacunosa em relação a isso: ela não veda expressamente, nem disciplina como poderiam esses entes federativos criar suas loterias e quais tipos de jogos poderiam explorar. A bem da verdade, a União pensou que conceberia um monopólio na exploração desse mercado.

Nesse cenário, que os Estados (Rio de Janeiro, Paraná, Maranhão e Paraíba) perceberam um vácuo legislativo e de vontade — sobretudo — atentos aos desdobramentos da ADPF 492 e 493, deram aos operadores de jogos uma alternativa viável e segura: as Loterias Estaduais. Assim, nasceram disposições regulamentares e editais de credenciamento de operadores antes mesmo que a União o fizesse, destacando-se a Loterj e a Lottopar.

No mesmo fluxo, alguns municípios entenderam que a lei não lhes veda expressamente, assim como a Constituição não lhes limitaria o direito de explorar os jogos lotéricos, desde que submetidos às regras fixadas na lei de regência. Assim, portanto, como impedir que os municípios não desejem uma fatia desse “bolo”? Por que querem proibir os municípios de explorar as loterias?

Portanto, o cerne da oposição não é jurídico, mas sim o controle do mercado. Tendo perdido o monopólio para os Estados, a União agora tenta impedir uma nova repartição de receitas, utilizando discursos que associam o setor ao crime organizado e à ludopatia, sem assumir a coragem de oferecer um mercado legal seguro e consolidado.

O fundamento jurídico incontornável: Competência Material

A tese de inconstitucionalidade das loterias municipais se baseia em uma leitura restritiva e equivocada do Art. 22, inciso XX, da Constituição Federal, que atribui à União a competência privativa para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios.

Contudo, a jurisprudência do STF nas ADPFs 492 e 493 já ofereceu a resposta, baseada em um distinguishing fundamental: a distinção entre Competência Legislativa (formal) e Competência Material (administrativa).

Como dito, o STF firmou entendimento de que a competência privativa da União para legislar sobre o sistema lotérico (definir modalidades e normas gerais) não se confunde com o monopólio da sua exploração (execução). Este não consta no rol taxativo de serviços exclusivos da União (CF, art. 21), ou seja, é da competência material dos Estados, Distrito Federal e municípios.

Assim, portanto, como a competência material não se restringe aos Estados (art. 25, § 1º, CF/88), tem-se como admissível aos municípios, o que foi consignado, cite-se, pelo próprio Ministro Gilmar Mendes, Relator das ADPFs 492/493, que assim se pronunciou:

É lícito concluir, portanto, que a competência da União para legislar exclusivamente sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive loterias, não obsta a competência material para a exploração dessas atividades pelos entes estaduais ou municipais.

No mesmo sentido, o Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto-vista ao apreciar as ADPF citadas, ratificou ser possível aos municípios explorar esse novo mercado regulado:

Entendo que, por não existir expressa vedação aos estados e municípios, a União não poderia… ao exercer sua competência legislativa privativa, criar distinções ou preferências entre União e estados, entre União, estados e municípios ou entre estados diversos.

Portanto, o precedente vinculante das ADPFs 492 e 493 estabeleceu que a competência material para exploração lotérica pertence à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Ao contrário do que sustentam os opositores, a competência municipal para a exploração de loterias é autônoma e originária, fundamentada no Art. 30, incisos I e V, da Constituição: Compete ao Município “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”.

A loteria se enquadra perfeitamente neste conceito, pois é uma fonte de receita não tributária crucial para o financiamento de políticas públicas locais essenciais (saúde, assistência social, educação). A destinação social dos recursos é a própria materialização do interesse local.

Prova inconteste: A legislação federal já reconheceu os municípios

O argumento de que o Município estaria proibido esbarra em uma prova fática incontestável: a própria legislação federal já previu a existência de loterias municipais.

A Lei nº 8.212, de 1991 (Lei Orgânica da Seguridade Social), ao definir o alcance da expressão “concursos de prognósticos” para fins de financiamento da Seguridade Social, previa:

§ 1º Consideram-se concursos de prognósticos todos e quaisquer concursos de sorteios de números, loterias, apostas… nos âmbitos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal.

Se a própria União, ao legislar sobre a Seguridade Social (Art. 195, III da CF), reconheceu a existência das loterias em âmbito municipal, é insustentável a tese de que os Municípios estariam constitucionalmente proibidos de explorá-las. A revogação posterior desse parágrafo não é suficiente para anular uma competência constitucional originária.

Conclusão: É preciso vencer o medo

O cerne de tudo é o controle do mercado. A União queria para si o monopólio. Entretanto, já perdeu uma briga para os Estados e Distrito Federal. Agora, está diante da nova repartição deste mercado, uma fatia que pode ser considerável também.

O discurso de que se teme elevado risco de lavagem de dinheiro e ludopatia não deve assustar, pois a cooperação entre esses entes é possível e plausível. Inclusive, na própria formatação da regulamentação, União e Municípios podem coordenar o melhor texto jurídico, criando critérios e obrigações de sorte que os princípios e valores que norteiam a regulamentação do setor sejam plenamente supridos.

A exclusão dos Municípios da exploração de loterias representa uma violação direta ao Pacto Federativo. Negar essa competência não apenas enfraquece a autonomia financeira local, mas impede que os municípios cumpram plenamente suas obrigações constitucionais em áreas sociais essenciais.

A presença de Loterias Municipais preenche uma lacuna no mercado e atua como inibidor da fuga de operadores de apostas para o mercado cinzento (ilegal). A solução para evitar abusos não é a proibição, mas a regulação e fiscalização cooperativa.

É preciso avançar na construção de um mercado de jogos e apostas de forma integrada e coesa, combatendo-se verdadeiramente as ilegalidades. O avanço das Loterias Municipais é a legítima e necessária concretização da autonomia constitucional e do modelo cooperativo federativo brasileiro.

Milton Jordão
Advogado. Sócio do escritório Milton Jordão Advocacia. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Autor de artigos jurídicos no campo do Direito Penal, Criminologia e Direito Desportivo.