SÁB 18 DE MAYO DE 2024 - 12:12hs.
Opinião - Filipe Mayer, advogado e sócio da CCA

Jogo Online: de boas intenções está o Parlamento cheio

Filipe Mayer, Sócio e responsável pela área de Jogo Online do escritório português CCA, escreve artigo de opinião para o jornal 'Expresso' sobre o PL 326/XIV que vem determinar limitações de acesso às plataformas de jogo online em Portugal durante a pandemia pelo COVID-19. 'Beneficiados por esta lei, só mesmo os operadores não licenciados, que veem o legislador aniquilar-lhes por completo a concorrência', afirma Mayer em seu texto bem crítico com esta nova lei.

Um bom processo legislativo exige estudo, ponderação, audição de interessados e de reguladores do setor, análise de impacto, tudo para que o ato produzido seja uma concretização plena e acertada do bem jurídico que visa proteger.

É certo que os tempos atuais são incompatíveis com processos legislativos aprofundados, mas também não podemos cair no extremo oposto de assistirmos à produção e aprovação de atos que não só são totalmente ineficazes na salvaguarda dos interesses que procuram defender como são, eles mesmos, motores potenciadores da lesão desses mesmos interesses.

No passado dia 8 de abril, na Assembleia da República, assistimos a um exemplo do que acabo de referir: uma boa intenção que resultou numa péssima lei que vai prejudicar ainda mais aqueles que se propunha proteger.

Refiro-me ao Projeto de Lei n.º 326/XIV do PAN, que vem determinar limitações de acesso às plataformas de jogo online o qual veio a ser aprovado com os votos do Partido Socialista, PCP, PEV, BE e Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.

Vejamos, em resumo, as (boas) intenções que levaram o PAN a querer intervir neste setor: O isolamento social imposto pelo atual Estado de Emergência obriga ao confinamento da população; ao se verem limitadas a sair, é normal que as pessoas procurem formas de entretenimento digital e se deparem com maior frequência com a oferta de jogo e apostas online. Ora, existindo “pessoas com menor capacidade de controlo dos impulsos, apreciadores da utilização deste tipo de actividades, poderão sentir menor controlo destes comportamentos e dessa forma acentuar a sua participação neste tipo de jogos com agravamento de consequências emocionais e financeiras”.

Até aqui, nada a apontar. Quem, no seu perfeito juízo, pode discordar que o confinamento imposto pela atual situação em que vivemos poderá potenciar a fragilidade de pessoas com comportamentos aditivos a procurar (ainda) mais plataformas de jogo? Ninguém.

Identificada a preocupação (legítima) a que uma parte da população pode estar exposta, qual foi a solução proposta pelo PAN? Limitar total ou parcialmente o acesso às plataformas de jogo online. Simples, não é? Problema resolvido? Não, problema agravado…

Pode não ser imediatamente percetível – lá está, apressar e legislar são dois verbos que não devem ser usados em conjunto –, mas algumas considerações podem ser avançadas para que se entenda que a solução aprovada não só é completamente inútil como é suscetível de agravar o problema identificado.

A opção legislativa revela uma ausência absoluta de trabalho de análise acerca do perfil de um jogador compulsivo, uma ignorância total a respeito do mercado do jogo online em Portugal (e no mundo) e um desconhecimento completo sobre o atual Regime Jurídico do Jogo e Apostas Online e do processo politico-legislativo que o antecedeu.

Se os autores do projeto tivessem perdido algum tempo a procurar entender e a informar-se sobre o comportamento típico de um jogador com problemas de adição, rapidamente concluiria que a limitação de acesso a plataformas licenciadas de jogo não impede ninguém de jogar. A história do jogo online em Portugal prova-o. Durante anos e anos o jogo online foi proibido e não era essa proibição que impedia os jogadores – adictos ou não – de terem acesso a toda uma oferta de páginas de jogo. Ou seja, em síntese, uma proibição de acesso a plataformas de jogo (falamos de operadores licenciados, pois só esses são regulados) não impede que os verdadeiros viciados em jogo deixem de jogar; simplesmente, passam a jogar em operadores não licenciados.

Se os autores do projeto tivessem analisado com o cuidado devido o mercado de jogo online em Portugal, teriam acesso a informação de várias fontes credíveis, assentes em estudos independentes, que indica que mais de 50% dos jogadores apostam em sites não licenciados. Ou seja, a maioria dos jogadores – sofram, ou não, de patologias – já acedem a plataformas ilegais de jogo, as quais estão completamente à margem desta lei (embora sejam muitíssimo beneficiadas pela lei agora aprovada).

Se os autores do projeto tivessem procurado entender uma das principais razões pela qual existe hoje um Regime Jurídico de Jogo e Apostas Online, perceberia que o mesmo assenta num princípio de defesa intransigente dos menores e de outros grupos vulneráveis, tendo sido implementado um sistema de licenciamento, atuação, adoção de procedimentos, políticas e práticas, fiscalização e aplicação de sanções muito exigente para assegurar que a prática de jogo é levada a cabo em condições de segurança.

Mas não foi feito nada disto. E podia (e devia) ter sido feito. Bastaria, no mínimo, ser solicitado o contributo do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) que tem muito e bom trabalho feito na temática da adição ao jogo, a opinião do Serviço de Regulação e Inspeção do Jogo (SRIJ), que tem tido uma atuação exemplar na regulamentação e fiscalização do setor e no combate ao jogo ilegal, bem como consultadas as associações representativas de operadores e jogadores, que têm sido ativas na produção de documentação relevante sobre o setor.

Aliás, fez-se o oposto. Este projeto de lei é um resultado claro da pressa, da falta de ponderação e de ausência de estudo. Isso é patente, desde logo, na confusa exposição de motivos do projeto: desde referências ao direito espanhol, quando o diploma citado implementa restrições apenas à publicidade ao jogo e não ao acesso às plataformas de jogo; passando pela divulgação do que refere serem “dados conhecidos até à data”, mas cuja fonte é o site https://androidgeek.pt/. Enfim. É este o apurado trabalho parlamentar por detrás do projeto legislativo que, agora, ganhou força de Lei.

Cumpre perguntar: alguém é beneficiado com esta lei? Os jogadores saem claramente prejudicados. Sem acesso a plataformas de jogo lícitas, estes irão “matar o vício” em operadores ilegais, que não oferecem quaisquer garantias de políticas de jogo responsável, onde não é assegurado o direito à autoexclusão, onde nem sequer existem garantias de que os resultados dos jogos não são manipulados ou de que os prémios pagos serão efetivamente entregues aos jogadores. Nem o erário público sai beneficiado já que, com esta medida, pode ver perdidos, no mínimo, cerca de oito milhões de euros em impostos, tão úteis na atual conjuntura. Beneficiados, só mesmo os operadores não licenciados, que veem o legislador aniquilar-lhes por completo a concorrência.

A adição ao jogo é um problema real e sério e exige de todos, a começar pelo legislador, uma atuação firme. Mas um problema sério deve ser abordado com a seriedade que, neste caso, faltou às forças políticas que elaboraram e viabilizam o Projeto de Lei n.º 326/XIV. Espero, a bem de todos - a começar pelos jogadores - que o Governo, que nos próximos dias irá regulamentar a lei, faça um melhor trabalho.

Fonte: Expresso.pt

Filipe Mayer
O Filipe é sócio da CCA desde 2012, tendo iniciado a sua colaboração com o escritório em 2005. É responsável pela área de Jogo Online, lidando com alguns dos assuntos e clientes nacionais e internacionais neste área. Desde sempre que tem desenvolvido a sua atividade na área de TMT (Tecnologias, Média e Telecomunicações), tendo-se especializado nos setores dos media e da publicidade e prestando assessoria jurídica a diversas agências, meios e anunciantes.  Mais recentemente estendeu a sua prática à área do entretenimento, com particular enfoque no jogo e apostas online, bem como na área dos eSports.